sexta-feira, 15 de junho de 2018

Beija eu

O momento do banho sempre foi uma hora sagrada pra mim. A pausa no meio do caos, das cobranças intermináveis. Me coloco debaixo do chuveiro, sempre no morno, fecho meus olhos e imagino toda frustração indo embora junto à água. Me transporto para uma realidade onde não há prazos, chefes exigentes, contas e contas pra pagar... E tem a música, é claro, da minha melhor playlist no Spotify. Às vezes eu me atrevo a cantar, berrar junto à música, para infelicidade dos vizinhos.

Hoje a música está bem alta. Uma música leve e romântica em alto som cura todos os males. Quando é Silva canta Marisa então... Não há dor que esse álbum não cure. Coloco a melhor canção de todas: Beija Eu. Fecho meus olhos, extasiada com os primeiros toques da faixa. Nesse instante de concentração, penso ouvir a porta do banheiro se abrir. Como sempre, a deixei destrancada. Abro um dos olhos, encaro o box de vidro que é apenas neblina. Pode ter sido o gato... Como sempre o espertinho atrapalhando em momentos indevidos. Mas poderia ser alguém muito melhor, com pés no lugar de patinhas.

Me vejo passando minha mão no box, a fim de conseguir enxergar algo além do embaçado. Em seguida, posso ver os cachos desgrenhados e costas nuas com duas lindas covinhas. O invasor lava seu rosto, molhando a ponta de seus cachinhos do topo da cabeça. Seca o rosto atrapalhadamente, então percebe que está sendo observado. Provavelmente vê apenas um par de olhos entre o pequeno espaço visível da porta de vidro. Sua cara amassada esboça o mais lindo sorriso. Minhas bochechas coram sem que eu nem mesmo saiba o porquê. Depois de 6 meses juntos, ele ainda tem o poder de me deixar envergonhada.

Observo a porta de vidro sendo arrastada com lentidão. O invasor primeiro entra, depois me vê, quieta, apenas a música tocando. Sua gargalhada gostosa reverbera pelo banheiro. Meus olhos se perdem nele, nos músculos definidos, nas tatuagens que sempre ficam ocultas pela roupa. Mas agora, naquele banheiro, iluminado pequena luz da janelinha, seu corpo inteiro reluz. "Me beija..." a música diz as palavras que eu simplesmente não consigo dizer. E nem precisa.

Ele não perde tempo. Temos hora para tudo. Pra trabalhar, estudar, reuniões, entregas... Mas para amar não existe hora. Toda hora é hora, e não há como deixar pra depois. O amor pede por mais tempo, e a gente oferece apenas alguns intervalos da vida pra ele. Talvez não seja tudo o que gostaríamos, mas felizmente, são as pequenas pausas que alimentam o sentimento. Queremos sentir inusitadamente o coração palpitar, sentir o desejo crescer, ver a paixão transbordar.

Ele me puxa em sua direção. Todo calor se intensifica e a água se torna menos quente que o encontro entre nossas peles. Seus olhos castanhos encontram os meus. Eles brilham e depois se fecham quando nossos lábios se encontram. Suas mãos envolvem meu corpo molhado e escorregadio. Encontram todas as minhas curvas, minhas tatuagens também escondidas, partes que tanto me deixam insegura. Minhas mãos também brincam, mas escorregadias e inseguras demais.

Fico desnorteada com seus beijos. Estão nos meus lábios, em meu pescoço, e descem... E ardem de forma gostosa. Felizmente, perco a noção do tempo. Seus beijos deslizam... Esqueço que é segunda feira. Suas mãos me erguem sem hesitar... Emprego? Nunca nem vi. Nossos corpos se unem, se encaixam, e eu já não sei de mais nada. Ele é minha pausa em meio ao caos, a correnteza que leva todos os problemas pro ralo. Momentos assim não deviam acabar. Mas infelizmente, se encaixam apenas nos momentos de pausa, como na hora de tomar um belo banho.

A imagem dele sorrindo continua se repetindo em minha mente. Quando abro os olhos, estou sorrindo também, como uma pré-adolescente apaixonada. A água ainda cai, a neblina aqui dentro contínua. Passo a mão pelo box do chuveiro. Olha para o lado de fora, e o gato me encara de volta, miando. Estamos de volta à realidade e cá estamos: só eu e o gato, como eu duvidava.

Me enrolo na toalha e pego o celular. Ignoro as várias mensagens nos grupos de WhatsApp e nem vejo o horário. Tudo o que me resta é mandar uma mensagem para ele. Talvez seja o único momento que eu tenha no dia para enviá-la.


Por Mary-Louise Paris.

3 comentários:

  1. UAU, eu me senti vivendo isso e escutando (mesmo sem tocar) o Silva cantando Beija Eu. Sensacional Mary-Louise!

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  2. Ahhhh amei essa sacada de mandar uma mensagem para ele!! Mandou bem demais

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  3. Somos as loucas das referências musicais haha, adoro isso em você! Boa crônica!

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