Inconveniente. Eu não sou daqui, vocês sabem. Eu vim do Cairo, do caos. Da terra da verdade. Ou da mentira verdadeira. Há algumas eras, em meu mundo, ouvi de uma mulher que, como eu, já esteve aqui, a seguinte profecia:
“Querer ser melhor o tempo todo é como pressionar uma faca contra o próprio pescoço”.
No entanto, a faca nunca esteve em meu pescoço. Estava presa entre meus os dentes, enquanto galgava posições, eliminando adversários com as próprias mãos - e por vezes retirando seus escalpos no caminho. Para nascer, rasguei o ventre de minha mãe. Para renascer, me alimentei dos ociosos, dos desistentes, dos medrosos. A cada vítima, mais largo era meu sorriso, mais impenetrável minha couraça e mais escura era minha carne¹. Densa como a noite. E como ela, caí sobre vocês.
Papiro agressivo, sanguinolento. Inscrições de outra realidade.
Saí de minha terra trazendo comigo os grilhões que vocês logo descobriram ser seus também. E pior, grilhões seus disfarçados de elos. Os seres do meu mundo têm pretensões menos nobres, de certo. Mas nunca mentiram sobre isso. Nunca escondi não ser daqui.
Lobo em pele de cordeiro, eu? Lobo em pele de cordeiro, vocês.
E foram vocês que me colocaram no topo. Vocês, a chancela de que eu precisava para saber que poderia ser mais que neste mundo que seus próprios escolhidos. Fui tiro que arranca máscaras e deixei rastro de pólvora. Não precisei ser exaltado em praça pública, como alguns atores e personagens - pseudo anônimos. Não precisei de explanações alongadas em sua ágoras modernas. Não precisei disfarçar minha preguiça de artifício literário e nem me acovardei como os que engaiolaram sua liberdade para garantir a piedade do sábio curador. Destes últimos, tenho notória pena.
O sábio lhes avisou de que deveriam seguir sem medo. Não deram ouvidos.
Sigo meus próprios caminhos. Mas o conselho era bom.
Meu nome percorreu suas bocas por conta das escrituras. Bênçãos do Egito. Fui evocado por muitos sem nem mesmo estar no meio de vocês. Saí da minha zona de conforto quando atravessei para seu universo. Permita-me lhes dizer: o risco os colocará no topo.
A faca nunca esteve em meu pescoço. Falsos profetas.
A cada estação eu deixava alguém para trás. Alguns com um afago. Alguns sangrando. Domínio. Não pelo sucesso de uma campanha, mas pela consistência da jornada. Controle. Ditando a temperatura em seu território. Sem linhas desperdiçadas, nem uma sequer. Talvez não conheçam algumas referências, cheias como o Nilo. Mas tenho certeza de que consegui atingir cada um de vocês. Em massa ou com os efeitos limitados - todos eles pensados. Tenham vocês sido afagados ou sangrados.
No fim de tudo, eu não via ninguém à minha frente. Setekh foi grande. Foi o início e o fim.
O Redimido encerra seu ciclo neste habitat, mas não neste mundo. Despede-se em paz, devolvendo os tampões das cabeças. Mas ainda tempestade.
Setekh, O Redimido