sexta-feira, 30 de junho de 2017

Verdade…


Inconveniente. Eu não sou daqui, vocês sabem. Eu vim do Cairo, do caos. Da terra da verdade. Ou da mentira verdadeira. Há algumas eras, em meu mundo, ouvi de uma mulher que, como eu, já esteve aqui, a seguinte profecia:

Querer ser melhor o tempo todo é como pressionar uma faca contra o próprio pescoço”.

No entanto, a faca nunca esteve em meu pescoço. Estava presa entre meus os dentes, enquanto galgava posições, eliminando adversários com as próprias mãos - e por vezes retirando seus escalpos no caminho. Para nascer, rasguei o ventre de minha mãe. Para renascer, me alimentei dos ociosos, dos desistentes, dos medrosos. A cada vítima, mais largo era meu sorriso, mais impenetrável minha couraça e mais escura era minha carne¹. Densa como a noite. E como ela, caí sobre vocês.

Papiro agressivo, sanguinolento. Inscrições de outra realidade.

Saí de minha terra trazendo comigo os grilhões que vocês logo descobriram ser seus também. E pior, grilhões seus disfarçados de elos. Os seres do meu mundo têm pretensões menos nobres, de certo. Mas nunca mentiram sobre isso. Nunca escondi não ser daqui.

Lobo em pele de cordeiro, eu? Lobo em pele de cordeiro, vocês.

E foram vocês que me colocaram no topo. Vocês, a chancela de que eu precisava para saber que poderia ser mais que neste mundo que seus próprios escolhidos. Fui tiro que arranca máscaras e deixei rastro de pólvora. Não precisei ser exaltado em praça pública, como alguns atores e personagens - pseudo anônimos. Não precisei de explanações alongadas em sua ágoras modernas. Não precisei disfarçar minha preguiça de artifício literário e nem me acovardei como os que engaiolaram sua liberdade para garantir a piedade do sábio curador. Destes últimos, tenho notória pena.

O sábio lhes avisou de que deveriam seguir sem medo. Não deram ouvidos.
Sigo meus próprios caminhos. Mas o conselho era bom.

Meu nome percorreu suas bocas por conta das escrituras. Bênçãos do Egito. Fui evocado por muitos sem nem mesmo estar no meio de vocês. Saí da minha zona de conforto quando atravessei para seu universo. Permita-me lhes dizer: o risco os colocará no topo.

A faca nunca esteve em meu pescoço. Falsos profetas.

A cada estação eu deixava alguém para trás. Alguns com um afago. Alguns sangrando. Domínio. Não pelo sucesso de uma campanha, mas pela consistência da jornada. Controle. Ditando a temperatura em seu território. Sem linhas desperdiçadas, nem uma sequer. Talvez não conheçam algumas referências, cheias como o Nilo. Mas tenho certeza de que consegui atingir cada um de vocês. Em massa ou com os efeitos limitados - todos eles pensados. Tenham vocês sido afagados ou sangrados.

No fim de tudo, eu não via ninguém à minha frente. Setekh foi grande. Foi o início e o fim.

O Redimido encerra seu ciclo neste habitat, mas não neste mundo. Despede-se em paz, devolvendo os tampões das cabeças. Mas ainda tempestade.

¹ Segundo a mitologia egípcia, deuses ligados à morte, como Anúbis e Seth possuíam a pele escura devido às almas das vítimas que chegavam ao submundo.

Setekh, O Redimido

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Em Tijolos Marrons, Sombras Dançam ao Gosto de Labaredas

Na mesma hora, Sombra abre as portas. O faz devagar, as grandes colunas de mármore branco se abrindo aos poucos. Já está ali, querendo espiar pela fresta que lentamente se abre, Luz, a dama em vestes claras sobre pele branca, a senhora de olhos como os raios que rompem as nuvens e os cabelos como fios de prata. E mesmo com os músculos tesos de Sombra, as portas demoram algumas horas a se abrirem, revelando o esplendor da donzela que observa todo o céu, a terra, e as pessoas ali presentes. Sombra jamais a vê – quando ela desponta, ele se esvai como se nunca houvesse existido. Sombra só era presente quando faltava a Luz.
Sua irmã demorava a chegar. Fogo vinha depois – e sua presença era ardente. Incendiava de homens os corações, dava-lhe gana no olhar, infundia-lhes propósito no coração. Por homens, a raça dos mortais, embora mais e mais fossem aqueles tocados por sua graça. Ela demorava um pouco para chegar, preguiçosa, e mais marota que sua irmã. Era morena sua pele, de cobre eram os fios de seu cabelo, e seu sorriso, dizem as lendas que seu sorriso é visível por detrás dos olhos de todas as mulheres, o sorriso de fogo, que fascina, e com o qual jamais devemos brincar.
Quando Fogo se juntava, ia-se a névoa matinal e os labores começavam. O vento insuflava e soprava por sobre colinas, radiantes com a luz que se derramava sobre elas, uma brisa quente, daquela que mexe com os cabelos alheios e que aquece o coração. Penetrava esse vento nas vestes de homens e mulheres do campo e na mente de desavisados poetas que se poriam a escrever, a compor, ou a amar. Coisas características dos poetas. A dádiva desse vento inspirador era o presente dessas donzelas ao mundo.
Porém chegava a hora, conforme elas se cansavam de olhar para o mundo mortal, em que deveriam se dirigir as suas camas, como qualquer um de nós o faz ao final do trabalho. Luz era logo a que se retirava, indo e deixando as suas costas um rastro de estrelas que ainda cintilariam até que as fosse buscar na manhã seguinte. Não que isso importasse. Pois observando, ávida por antever a vida comum dos mortais, Fogo os espiava pelas frestas da porta que começava a se fechar. Ela espiava o que faziam com ela – as lareiras acesas que espantariam o frio da madrugada, as tochas que iluminariam as ruelas, as velas que celebrariam um aniversário. Havia, porém, alguém que ela esperava para ver mais do que a qualquer outro.
Ela flertava com ele sempre que sua irmã ia-se. Sabia que não podia tocá-lo – ele não sobreviveria, pois mesmo em sua mais singela chama, havia luz. E ele não suportava a luz. Mas, e como eu sei que todos vocês já viram algo assim, há, entre sombras e fogo, uma sensual dança desenhada em meio a qualquer superfície. As labaredas lambem o ar, quando se faz uma fogueira, e por toda a volta, empolgadas, as sombras dançam ao seu sabor. A noite, aquela grande sombra que se estende sobre o mundo, fica belíssima quando sobre ela são atirados as fagulhas de uma fogueira, como estrelas que partem da terra para o céu.
Luz ia embora e logo Sombra aparecia. A ele cabia o eterno ofício de abrir e fechar as portas do Sol. Porém ele também a olhava, amarrado, fadado como estava a sempre fechar as portas, para o sorriso moreno de Fogo que lhe espiava. Ela também não escondia seu desejo de lhe aquecer – via-o fadado ao frio da noite, a solidão, sem jamais ser tocado por mãos que não quisessem rasgar as Sombras por uma nesga de luz. Mesmo os homens não fechavam os olhos por muito tempo para vê-lo – e quando o faziam, perdiam a consciência.
Ela dele se apiedava – ele dela se enamorava. E todos os dias, no mesmo horário, naquela pequena margem enquanto as portas do Sol não eram fechadas, eles se amavam.


Trovador

Começou como se não fosse dar em nada. Ambos os lados não tinham expectativas um com o outro. Se conheceram da maneira mais genérica possível, em um grupo de rede social. Mal se falavam no início. Ele por achar que ela não gostava da sua pessoa. Ela por nem notar ele direito. Eram algumas as mensagens trocadas entre si, porém nada o suficiente para fazer com que houvesse uma conexão maior do que a de apenas conhecidos.

Mas um dia a história mudou. Não por coincidência, mas porque ela tinha de mudar. Afinal, ele queria chamar a atenção dela, só não sabia como. As poucas palavras trocadas no grupo de comunicação virtual não eram o suficiente para que seu objetivo fosse alcançado. E se as palavras não eram sua amiga, se fez valer da imagem. Decidiu mandar uma foto com um amigo para aquela que desejava chamar a atenção. No entanto, o tiro saiu pela culatra.

Ela respondeu a sua foto. Ele viu a mensagem dela chegando e seus olhos já brilharam, pensando se tratar de um interesse por parte da menina. Ela estava de fato interessada. No seu amigo. Inclusive pedindo o número dele. E como se fosse numa tourada, ele foi apunhalado com força no peito. Porém, nada pôde fazer. Ele era daqueles que resguardam os (poucos) sentimentos de afeto que surgem em seu coração. E por conta disso, nem ela, nem seu amigo faziam ideia do princípio de amor que ele poderia estar sentindo.

E por meses aquele sofrimento de angústia que o afetava se estendeu. Até os dois começarem a se distanciar e o seu amigo voltar a namorar com sua ex. Era o momento que ele esperava para poder, finalmente, dizer o que sentia. E o fez. Mal sabia ele que ela também nutria secretamente uma ternura pelo garoto, outrora desiludido, agora realizado. Entretanto, não era uma realização concreta. A distância ainda era o empecilho maior. Embora de humanas, ele tinha noção de algo bem exato: 1492 era o número de quilômetros que os separavam.

E ainda que estivessem fisicamente tão distantes, se sentiam mais próximos um do outro do que de qualquer outra pessoa que fizesse parte de seu círculo social do dia a dia. Esse empecilho um dia veio a ser superado. Ela foi ver ele. Mas não por muito tempo. Era só uma escala para ela poder fazer uma viagem ainda maior. Ficaram juntos por somente 10 horas. Mas que horas! Há quem diga que foram as melhores que já viveram. Só que, como diz o ditado, tudo que é bom, dura pouco. E as 10 horas se passaram como se fossem 10 minutos. E a viagem continuou.

Dentro de tantos números já citados, agora o que mais incomoda ainda reflete a distância que os mantém longe um do outro. E o incômodo, assim como os números, é ainda maior. Dessa vez, 10683. Mas nada que faça com que eles fiquem distantes. Ainda se sentem como as pessoas mais íntimas do mundo. E esse mundo tão vasto, que os separam, um dia há de uni-los. Pois para quem esperou por 3 anos, sofreu por 3 meses e amou por 10 horas, o destino guarda não um número, mas um símbolo. O do infinito.

Kevin Dezap

SUPERCOOL - TOMO 3 - CAPÍTULO FINAL - ESTÁ TUDO ACABADO

"Está tudo acabado". Penso eu. Finalmente chegaremos ao final dessa luta. E infelizmente perderemos. Nosso plano deu errado, parecia tudo bem orquestrado para finalmente terminarmos com esse maldito déspota. Mas tudo deu errado. Agora parece que todo esse plano não passou de uma doce ilusão juvenil de liberdade, mas quem alcança algo sem sonhar afinal?

Filho da puta. Todos nós caímos nesse seu papinho de merda. Eu lembro bem quando você surgiu, um maluco de jaqueta e bota militar, cruzando a cidade pelo ar com aquele seu cabelo escroto e um bigode que lembrava Josef Stalin. Lembro quando era um jovem herói bêbado e inconsequente. Brigando com alienígenas visivelmente embriagado. Você era o super fodão.

Quer saber? Relembrando agora, prefiro esse seu "eu" doido e hedonista à sua versão seguinte, engajado e revolucionário. Todos nós acreditamos naquele seu papo de merda, suas promessas furadas e vazias. Era tudo muito bonitinho naquele seu discurso: sem mais corrupção, sem mais desigualdades, sem mais crimes. Nós caímos nessa armadilha. Te demos poder demais.

E se poder demais nunca cai bem em nós, meros mortais, que o diga em semi-deuses, como você era. E então tudo deu errado, o jovem revolucionário se tornou um ditadorzinho de merda. Típico. Mas na hora pouca gente consegue perceber. O discurso é comovente.

Agora, pagamos por isso. Temos todo o nosso país aparelhado e dominado por você, seu filho da puta.

Agora, eu estou nos esgotos dessa maldita base flutuante. Esse seu paraíso de riqueza no céu onde você podia ver muito bem nos definharmos na miséria e na tristeza.

Agora, eu estou aqui todo machucado, mental e fisicamente. Meus companheiros estão desmaiados ou estão mortos. Ouço agora os gritos de dor do Corvo, nem mesmo os outros "supers" foram páreos para você. Nem mesmo o destemido Corvo.

Eu estou ferido e cansado a minha morte, na sua forma, chegar. Nada poderei fazer, sou apenas um reles mortal. Estou apagando.
.
.
.
.
Não posso morrer agora; Não nesse momento. Preciso recobrar minhas forças e fazer um último esforço. Se eu conseguir sintonizar corretamente os explosivos na mochila de cada pobre miserável que entrou nessa comigo, talvez consiga mandar isso tudo para os ares.
.
.
.
Consegui. Falta pouco para isso tudo explodir. E aí vem você. Nesse seu ridículo traje militar. Você traz a cabeça do Corvo em suas mão, me olha com esse ar de superioridade e confiança. Filho da puta. Está tudo escuro aqui em meio a esses escombros.

Você vem se aproximando, não me acha digno da sua pressa. Venha seu bastardo, me dê tempo suficiente para que essas bombas explodam. Me subestime. Você irá se foder por sua própria presunção. Invadir isso aqui foi uma ideia indecente e muito ingênua mas morrer sabendo que nunca mais um verme que nem você irá atazanar de novo a humanidade já valerá a pena.
.

Venha, me enfrente.

.

Isso, coloque as mãos no meu pescoço e tente me matar devagar. O tempo é precioso. Gaste ele ao meu favor.

.

Eu sorrio. Você não entende. Falta pouco.

.

Eu gargalho, você continua a não entender. Morra seu verme desgraçado. Que no inferno eu beba bons drinks com Corvo, Michael, Haruna e os demais. E que você vá direto para a puta que te pariu!

.

HAHAHAHAHAHAHA

.

Explodiu.


Está tudo acabado.



Ass: Sr.Omar

Fogo líquido


As pessoas sempre me perguntam quem é Tyler Durden.
É como se todo mundo exigisse uma definição para o que enxergam com negação. Não basta aceitar que nem tudo se limita a uma simples explicação?
Não.

E mesmo assim todos seguem fazendo as perguntas erradas e forçando.
Faz onze semanas que estamos entre quatro paredes e eu não consigo ‘chorar’ com vocês me olhando.
E isso começou porque eu estava sem tempo e precisava de uma noite de sono.
O desafio, a descobrimento, receber na terça e esquecer até às dez para meia noite da quinta-feira: isso me fez dormir mais do que um bebê, mais do que pode ter feito bem à você.
Todas essas semanas ouvindo as mentes falando “somos o futuro da imprensa”. O silêncio não significa que estejam ouvindo, eu sei que estão tramando a próxima sentença.
E, por favor, falem, eu gosto de ouví-las.
Admiro cada linha que escrevem com o sorriso de quem não tem na cabeça uma mira.
Somos todos muito novos e ninguém sabe o que é morrer. Mas a morte é o primeiro passo para a eternidade, exatamente aquilo que o homem chamou de perenidade.

Eu sei disso porque Tyler sabe disso.

A minha palavra tem o mesmo objetivo que a sua. A diferença é que eu gosto de cobrí-la e hoje eu a trouxe bem exposta, nua:
Uma banheira de gelo;
Vapor de ácido nítrico a 98%;
3 medidas de ácido sulfúrico;
Glicerina;
Serragem;

Boom.
Não precisa de explicação. A vida é assim, e aí de repente você tá no chão.

Eu sei disso porque Tyler sabe disso.

Eu os estive observando insano para que me dessem o soco mais forte que conseguissem, porque eu necessito da adrenalina para limpar a fuligem.
Preciso adicionar gasolina e coca diet ao que todos nós sabemos. E aí então eu paro de brigar com o tempo.
E depois de conseguir me abrir para vocês, ainda não sabemos quem somos. Talvez eu esteja no meio, à frente ou lá atrás. O que importa é que no primeiro dia me colocaram uma arma no fundo da garganta e eu prometi que não falaria só com vogais.
Todos vocês, aqui, nessas noites, são as minhas férias. O quão bons, ruins ou medianos foram me fizeram dormir porque se tornaram minha oficina de ideias. Talvez eu seja um projecionista de cinema velho colocando 0,83 segundos de nudez em um filme inocente ou o mais provável, um de vocês: estudante, exausto, de esquerda, descrente.

Agora, no fim, eu conto a verdade do que tudo é:
a arma
a anarquia
Foi tudo feito para uma mulher.

Eu mesma, Tyler Durden.

Confissão de irmã mais nova

Eu estava deitada numa cama que não era a minha. Tornou-se minha no momento em que minha irmã se casou e mudou-se. Pensava em como a vida dela tinha se transformado, e a minha não. Quer dizer, agora eu dormia numa cama; antes, eu só tinha um colchão. Não digo que eu não era feliz no espaço que me era disponível. Tive muitos sonhos incríveis, e também muitas noites mal dormidas. Minha mãe sempre dizia: "vou comprar uma cama pra você". Mas não era isso o que eu realmente queria. 

Quando minha irmã se casou ganhei um quarto, uma estante vermelha e um espelho. Coloquei na estante alguns livros, porta-retratos, caixinhas com lembranças e bijuterias, e duas garrafinhas, onde quis guardar as pétalas do buquê de casamento de minha irmã, que não peguei na sorte, mas ela fez questão de me dar mesmo assim. Ao casar, ela ganhou uma casa para cuidar, um marido amoroso para compartilhar todas as coisas, e muito mais responsabilidades. No casamento, minha irmã colocou nada menos que a sua vida. 

E era isso o que eu realmente queria.

Mas ainda estou deitada numa cama que não é a minha. Quando olho nos olhos de minha irmã, e de tantos outros, percebo que esperam de mim algum tipo de reação: alegria, satisfação, gratidão. Mas não. Já nem sei o que meus olhos dizem. Mas se eles mostram o que há dentro de mim, minha irmã ainda deve se lembrar de quem é essa cama. Quando olho pro espelho que ganhei, me sinto só. Vejo uma menina sentada na plateia, apenas esperando pelo clímax do espetáculo da própria vida.  

Espero não permitir que essa moça do espelho fique para sempre assim. Os olhos dela precisam daquele brilho de algum tempo atrás. Quando ela dormia no colchão, tinha sonhos dos quais hoje nem se lembra... e outros nos quais pensa até demais. Seu desejo na verdade é que, agora que existe um quarto só dela, talvez seja a hora de uma vida só dela também, além da extensão da irmã mais velha. Um conselho pra ela: Tenha coragem, garota do espelho. Não pense que está ficando apenas com o que não serve mais pra alguém. Se você prestar bem atenção, vai perceber que esse pode ser só o começo da vida que você realmente queria.

Carolina Caracol

O assassino senta ao lado

O medo da morte, de certo, transforma quem nós somos, quem seremos ou deixaríamos de ser. Viver com medo de morrer por via das dúvidas talvez seja a própria morte empiricamente sendo consumada nos passos que deixaríamos de dar ao sairmos dos nossos quartos todas as manhãs, ao não emitirmos a sonoridade da voz ao nos calar, abafar nossas risadas, engolir o próprio choro, nos aprisionar, não nos relacionar e apostatar do que acreditamos que pudesse dar sentido à vida.

Lembro-me das noites de temor vendo o dia clarear, do frio, do percurso que caminhei durante dias sem ouvir a buzina dos carros, dos passos, som das conversas, o canto dos pássaros.

A minha própria voz já não ouvia, meus pés já conheciam aquele mesmo caminho que me levava mecanicamente ao meu destino todas as noites, afinal o rumo da vida continuaria.
“O que eu estava fazendo ali? ” A única pergunta que eu fazia a mim todos os dias.

Quanto a minha vida valeria.
Sentia-me frívola, fraca, atemorizada.
Resolvi andar com um spray de ácido muriático, me senti potencialmente protegida da morte ao menos até o portão de casa, a segurança não durou mais que dois minutos. Estava ali novamente amedrontada.

A que poder me atribui para danar um outro ser com ácido mesmo que por autodefesa? Logo pensei, “Serei um monstro”.
Desabei.
Me calei dando espaço aquela voz masculina sussurrar ao meu ouvido:
“Eu sou frio”
Voz que martelava em minha mente, rasgava meus ouvidos feito lâmina todos os dias, a mesma do criado ao lado da cama, presumivelmente para me trucidar naquele dia.

A liberdade daquele opressor me encarcerou, e faz germinar em mim o decesso das minhas ambições naturais. Já não sabia se viveria, se teria mais alguns dias ou se aquele pesadelo acabaria.


Isabel Cristina 

Perfil

Sou o símbolo da ruína de uma ideologia considerada caída pelos homens ocidentais. Sem os grilhões tecnológicos que impediam uma catástrofe, superaqueci e explodi. Um inimigo invisível, aniquilei dezenas de vidas e decretei a morte de vilas e habitações, hoje, enterrados ao meu redor sob toneladas de areia. Fui a origem de artigos científicos, assim como de filmes de terror e histórias românticas; nas quais executei uma canção mórbida sob as quais soldados e bombeiros contaminados tiraram seus pares para dançar e flertaram com a morte em nome do amor. Minha nuvem de plutônio, césio e estrôncio enevoou incontáveis histórias de vida, de resistência, mas não as apagou. Fui mais que um apocalipse soviético, fui palco onde escondi sob minhas cortinas pessoas, vivências, vozes. Concedi à natureza o espaço que, seu por direito, o homem havia tomado. Fui renascimento, vegetação que venceu o concreto e floresceu, animais selvagens que encontraram lar. Porém, ainda mortal. Musgos que se tornaram pequenas bombas atômicas, florestas avermelhadas e agora talvez perenes, arte letal esculpida por mim. Para os samosely que me desafiaram, não passo de lar; temem mais a fome e a solidão do que a mim. O que significo depende do ponto de vista de quem observa, mas ainda sou o que sou. Meus tentáculos não têm cheiro, cor, som ou aparência, mas deixam marcas, ceifam. Fui passado, mas me perpetuarei a cada geração contaminada por doses de radiação. Prazer, eu me chamo Chernobyl.

Lukas Salazar

Mais um Dia

A cidade ficava linda vista de cima do parapeito da ponte principal que cortava seus bairros. Havia luz no meio da escuridão e mesmo que o barulho de carros, motos e caminhões fosse constante, era possível sentir a calma da cidade vista de um ângulo não tão próximo. Respirou fundo o cheiro de maresia e olhou para baixo, vendo água, apenas água. Balançou os pés, vendo suas botas surradas indo para frente e para trás, os cadarços desamarrados voando com o vento e aquela sensação gostosa de liberdade... ele se sentia livre quando estava assim, imerso nele mesmo, se colocando em pontos extremos, como: altura. Muitas pessoas não chegariam nem perto do parapeito daquela ponte, mas ele não, ele estava ali sentado há minutos e ficaria por horas se fosse necessário, seria muito melhor do que estar em casa e ver seu pai batendo em sua irmã ou quebrando algo só por não ter dinheiro para comprar mais bebida. Aquilo estava passando dos limites, se é que já houve algum! Antes seu pai não era capaz de encostar em Elle, sempre descontava suas frustrações no corpo do filho mais velho, porém depois de perder o emprego, sua fúria parecia ter triplicado e agora, a menina de quatorze anos também sofria nas mãos de quem era para ser seu maior herói.
Levou as mãos até o capuz e o puxou, escondendo sua touca preta, se escondendo em suas roupas o máximo que podia. Reflexo. Puro reflexo. Lembrar de seu pai e do que sofria nas mãos do homem, lhe fazia querer se esconder, se proteger, fugir ou simplesmente sumir, virar poeira quem sabe... não era má ideia. Riu nasalmente e um sorriso irônico abriu no canto dos lábios enquanto pensava naquelas bobagens, nunca poderia fugir.
Colocou ambas as mãos no cimento frio, como se fosse tomar um impulso, e olhou para baixo. A água estava calma e a distância era grande, poderia ser fatal, não podia? Ele poderia morrer calmamente naquela queda. Seria como voar ou como se libertar finalmente dessas correntes que prendiam seu corpo naquele mundo que nunca lhe deu nada além de socos e ponta-pés.
Algo vibrou no bolso de seu casaco e ele parou. O que seria? Ele não tinha créditos e nada do tipo, o que seria? Oh, provavelmente sua operadora ameaçando bloquear sua linha por falta de créditos há tanto tempo. Ajeitou-se novamente no cimento e usou uma mão para pegar o aparelho um tanto ultrapassado, a tela rachada e quebrada em alguns pontos, mas estava tudo bom o suficiente para ele conseguir ler o SMS que brilhava na tela.
“James (22h10): Você precisa sobreviver, cara. Não desista!”
Sorriu e ficou encarando a tela até a mesma se apagar por falta de contato, no entanto, ele ainda estava olhando para aquele aparelho. No mínimo recebia três mensagens daquela por dia, uma de manhã, uma de tarde e uma de noite, sempre do mesmo amigo. Ele recebia amor e sentia esse amor mesmo que em poucas linhas de uma mensagem eletrônica. Não estava sozinho, sabia que não. E por isso, justamente por isso, Mark sobreviveu.
Estava vivo por mais um dia.

JACKSON

[ ]

    Sou um acúmulo de sessenta e cinco por cento de oxigênio, dezoito por cento de carbono e um de fósforo. Entre um sonho e outro, lembro que sou um corpo formado por tecidos, ossos e músculos. Sou a repetição infinita e exata de todo o mundo. Não sou um mundo. Todos meus sentimentos já foram experimentados, todos meus sonhos, vividos. Todas as dores que me consomem nesse instante não são exclusivas.
         Certo dia vi a foto do corpo de um homem que havia acabado de se jogar de um prédio. E o que leva uma pessoa a persistir na própria vida? Até suas reflexões e vazios são pouco originais. Na tentativa sempre frustrada de sermos especiais, nos perdemos. Nosso caminho é o mesmo. Angústia.
         Não sou suicida. Sei que a morte não responde às minhas inúmeras questões. Quem dera fosse simples desse jeito. Insisto na idéia de buscar sentidos, pequenas explosões de emoção. Sou medíocre, como qualquer um. Alguém que não admite ser insignificante, ou menos que isso.
         Tenho algumas políticas próprias. Não vou a enterros, não abro guarda chuvas (mesmo durante as tempestades mais ferozes), não seguro o choro e nem o riso (mesmo nas situações mais inconvenientes). Talvez isso me faça crer que sou diferente. Pois, declaro, de uma vez por todas, que não o sou!
         Admiro quem tem fé: não tenho. Sempre me faltou capacidade de acreditar que existe algo acima de mim. Ego. Igrejas me dão náuseas. São altas demais, grandiosas demais e me põem no meu lugar. Quanta pequenez! Detesto estar no meu lugar.
         Sou previsível. Não me espanta mais meu egocentrismo. Mesmo quando pretendo falar do tudo, do nada ou dos outros, acabo falando de mim. fim

Eduardo Galeano

Vem errar

Melodia do refrão (01:06 - 01:49)


[refrão]
Se o inesperado é tudo quando não se espera nada,
quero saber o que você pensa de mim
Subvertendo as regras e jogando sem amarras,
torço pra que haja um empate no fim

Se o “certo” atenta contra nós, não finge que não vê e vem errar (vem errar)...
Se o “certo” cala nossa voz, por que não esquecer e deixar rolar (deixar rolar)...?

Once upon a time, gap temporal
Passado, futuro, momento ideal
January blues, papo transcendental
Um ar de absurdo, um quê de surreal

Não sabia que seria assim, nem imaginei
Fui com a jogada calculada e então apostei
Lancei todas as fichas naquela madrugada
E posso garantir que não me arrependo de nada

Imponderável, inevitável, match inesperado
Parecia que o caminho já tava traçado
Jogo psicológico, atração fatal
Wicked games da vida real

Mas nesse jogo não há ilusão, perceba
Quando entrei na partida coloquei todas as cartas sobre mesa
Straight flush em você, mostrei minha intenção
Às claras, sem marra, revelei minha mão

Hold’em, vontade ocultada de forma instintiva
Cocaine, comparou-me, disse que vicia
E se eu for solução, que da realidade não foge?
A diferença entre vício e cura é a dose

[refrão]

“Querer não é poder”. Firme nas contradições
Por pouco não pedi seu manual de instruções
Até já achei bobeira pensar que se importa
Mas descobri que há sentimento da sua maneira torta

No toque de seus lábios, colisão, supernova
Muito tempo inebriado, sanidade posta à prova
A mente vaga pelo espaço, não sinto o tempo passar
Singular, tipo Arabella, interestelar

E hoje o que sobrou daquela sua indiferença
Me parece a auto-censura que lhe é imposta pela venda
que finge usar, pra mascarar seu envolvimento
Que te confunde, apetece e consome seu pensamento

Será que agora descobri o teu segredo?
Agitada e sorridente, com um brilho que ensejo
Diamante louco, lapidando meu desejo
E se responde sua pergunta: sim, eu te conheço

Dividindo o mesmo sonho, como esquecer?
Sabe que sempre fui do tipo que prefere esclarecer
Mas depois dessa semana, dane-se quem tá mais certo
Prefiro confundir se for pra ter você por perto

[refrão]

Sigamos o conselho ideal pra nós dois
Viver mais o agora, sem pensar tanto em depois
Não nade contra a corrente, siga o fluxo da onda
Surfando em nosso caos, que a temporada seja longa

Setekh, O Redimido