sábado, 3 de junho de 2017

“Minha mente é um ato político.”


Eu conheci o Alberto na praia. Foi no início do ano. Era sábado e ele, típico carioca, passava parafina na prancha antes de cair no mar. Eu ainda estava aprendendo a surfar e ouvia dizer, por ali, que ele já praticava há mais de 30 anos.
Entre um mate e outro, eu puxei assunto. Perguntei primeiro sobre o equipamento... Ele, um cara simpático e de gargalhada fácil, não poupou palavras e conselhos a uma jovem “rata de praia”.
Conversa vai, conversa vem, descobrimos mais uma paixão em comum: a política. E, logo, outra coincidência: ele estava iniciando a carreira de fotojornalista, enquanto eu, como vocês sabem, sou jornalista independente.
O papo fluiu, o tempo voou. Anoitecia. Ele disse que tinha que ir, levaria a esposa para jantar naquele dia, um dos poucos em que ela não estaria trabalhando. Antes de partir, no entanto, peguei o seu contato. Sentia que ele tinha muito a me ensinar... Muito mais que quilhas, picos e backside.
Com a correria do dia-a-dia, acabei esquecendo de ligar pra ele. Porém, há uns dias atrás, surgiu a oportunidade de fazer uma reportagem sobre pessoas que mudaram de carreira depois dos 40. Na hora eu lembrei de quem? Sim, do Alberto.  Antes de se aventurar no fotojornalismo, ele atuava como Biólogo, sua carreira de formação.  A migração ocorreu na época do golpe... quando ele sentiu necessidade de registrar tudo o que estava acontecendo naquele momento tão importante da história de nosso país. Não tinha como ser outra pessoa. Eu precisava entrevistar o Alberto.
Combinamos de nos encontrar, novamente, na praia. Mas aquela quarta amanheceu chuvosa. Ele sugeriu, então, que tomássemos um café ali por Laranjeiras. Quase não o reconheci quando chegou sem sua roupa de neoprene. A temperatura não chegava aos 24°C, mas Alberto vestia calça jeans, casaco e tênis.
Ele me contou um pouco da sua vida de biólogo. Escolheu a biologia porque queria conhecer o mundo. Trabalhou com conservação e gestão ambiental. E o que menos sente falta é, sem dúvidas, de trabalhar em escritório. Ele odiava ser limitado por paredes... Mas amava descobrir, cada dia mais, o tanto que o meio ambiente pode ser um ato político e moldar as formações do Estado.
Quando ele falou em ato político, nossa conversa começou a seguir outro rumo. “Minha mente é um ato político”, ele me confessou. E isso despertou a minha curiosidade por sua formação ideológica. Perguntei por sua família. Ele pareceu incomodado. Encostou na cadeira e cruzou os braços. Coçou os olhos e começou a falar: “Meu pai trabalhava no Banerj; era sindicalizado. Um homem que sempre se preocupou com as coisas coletivas. Jamais admitiria a naturalização da pobreza. Eu herdei isso dele.” Ele sorriu - um sorriso leve, marcado... carregado de boas lembranças – e completou: “Eu não acredito na felicidade individual, sabe, Laura? Eu só acredito na felicidade coletiva. Cara, não é justo eu ser rico num país cheio de miséria e de pobreza. Não dá pra ser verdadeiramente feliz  sem praticar o mínimo de empatia. O Brasil não é um país pobre... mas é pobre de justiça. Eu tava meio encastelado, mas o fotojornalismo me trouxe de volta para a realidade.
Retomei o fio da meada. Queria saber o porquê do fotojornalismo. O porquê dele se aventurar em uma área tão distinta da anterior. Ele me disse que a fotografia sempre esteve presente em sua vida e sempre que viajava para fotografar a natureza, sentia falta de fotografias da realidade; somou isso à vontade de retratar, em imagens, sua visão de mundo. Ele me contou, também, que têm uma memória fotográfica incrível e que sua cabeça é uma extensão do seu trabalho. “Pra provar que minha cabeça e meu trabalho são uma extensão um do outro, olha meu cabelo. Tá até ficando branco!” – ele dizia em meio a gargalhadas.
Eu, claro, fiquei curiosa para conhecer mais do trabalho dele. Quando ele me disse que iria fotografar o ato da Greve Geral, na sexta seguinte, nem pensei duas vezes antes de me oferecer para acompanhá-lo.  Ele levantou as sobrancelhas, coçou o nariz... e aceitou minha companhia.
Na sexta, nos encontramos na ALERJ. Ele estava inquieto. Trazia consigo sua câmera, uma Nikon D3100, e um bloquinho de papel com uma caneta. Ele previu minha pergunta e já foi explicando “é pra recolher assinaturas de direito de imagem”. Falou que sua câmera não tem seguro e que isso o deixava bastante desconfortável. Me confessou, também, que sentia medo por estar ali. Medo de quem deveria lhe passar segurança: a PMERJ com suas balas de borracha. Medo de injustiça e covardia. Mas a câmera é seu maior escudo de super-herói... com ela, ele se sente protegido. Seguimos para o protesto.
No decorrer do ato, eu apenas o observava: seus olhos brilhavam por estar capturando aquela realidade. Ele se dedicava a registrar cada detalhe do que a rua tinha para dizer. Em certo momento, porém, a ideologia falou mais alto que o amor à profissão. Quando as bombas começaram a estourar, ele avistou um pai desesperado com seu bebê num carrinho... não consegui esconder minha surpresa quando ele deixou a câmera de lado para ajudar o homem a sair daquele lugar. Quantos de nós não aproveitaríamos para fotografar aquela cena de desespero em meio ao caos? Alberto, porém, tomou partido da situação. Que humano!
Quando me reaproximei dele, vi que estava tremendo. Mas, a coragem o levou para perto da área de conflito. Ele não abriria mão de fotografar a truculência policial. Bombas estouraram. Gás lacrimogênio. Ele não correu. Fechou os olhos e, lacrimejando, tirou uma sequência de fotos no modo automático. Tivemos que recuar. Na correria, me perdi dele.
Na segunda-feira, meu telefone toca.
“Fala, Laurinha! Tudo tranquilo?”
“E aí, Alberto! Foi louco sexta, né?”
“Nem me fala, garota! Tava aqui editando e agora tô sofrendo de depressão pós-foto.”
“Que? Como assim?”
“Laura, é uma merda ser medroso. Se você visse o tanto de fotos que saíram tremidas.”
“Ah, para! Mas, olha, eu já ia te ligar pra agradecer. A reportagem tá quase pronta. E foi genial poder escrever sobre você. Você é muito corajoso, viu?”
“Tamo junto! Espero que a gente consiga, através do nosso trabalho, mostrar a realidade política do Brasil. Não esquece de me mandar quando terminar de escrever hein? Quero ler o tanto que você falou mal de mim.”
“Não me odeie, só falei verdades... Mas pode deixar. Te mando sim!”
Desliguei o telefone e me peguei refletindo. Sou muito grata pelos encontros que a vida me proporciona. Alberto Veiga, um homem comum que não tem ambição de aparecer, mas que o mundo inteirinho merecia ter a sorte de conhecer.  
                                                                            
Laura Haruna

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