Numa rua escura e fria de Quioto, com árvores gigantescas cobrindo a calçada, escuta-se o som de passos apressados indo de encontro às poças de lama que inundam a cidade. O vento forte atrapalha a visão enquanto gotas de chuva gélidas caem como tijolos sobre a testa de um homem desconhecido. Eu observo o homem. Anda olhando para os lados, um certo tom de desespero estampado em seu rosto fino, como quem foge de algo tenebroso mas que não merece total atenção do resto do mundo. Esse homem foge de um conflito interno, mas não se deixa passar despercebido quando me encara nos olhos e suplica por ajuda.
‘’Esconda-me!’’. É um pedido ou uma ordem? Não sei. Apenas observo o homem desconhecido e percebo que talvez eu tenha em minhas mãos a decisão de salvar ou não a sua vida. Pode tratar-se de um criminoso, pode tratar-se de um foragido. O homem anônimo me encara nos olhos e não pronuncia mais nenhuma palavra. No entanto, há um silêncio ensurdecedor na rua escura e fria de Quioto.
Eu ajudo o homem. Entramos num beco que dá acesso à um prédio abandonado, subimos um, dois, três andares e ficamos lá, amparados pelo teto de concreto e afastados por dois pilares que ameaçam cair. O homem desconhecido respira fundo, não como quem esteja aliviado mas sim como quem finalmente tem tempo. Tempo para respirar. Ele calmamente tira de seu bolso um maço de cigarros, acende um e faz um gesto como quem estivesse me oferecendo outro. Recuso. Não fumo junto de desconhecidos.
Enquanto o silêncio perdura durante a noite gélida e tempestuosa, resolvo apresentar-me ao homem desconhecido pois percebo que também sou um desconhecido para ele. ‘’Louie Edmond’’, eu digo. O homem anônimo balança a cabeça em gesto de cumprimento. Ficamos parados observando os raios enfeitarem o céu com seu espetáculo por minimamente vinte minutos, até que o homem desconhecido dirige-se a mim: ‘’Haruki Murakami’’. Seu nome pesa no ar e preenche todo o vazio do prédio abandonado em que nos encontramos. O homem desconhecido agora tem nome e história. Trata-se de um escritor renomado do Japão, que anda apressado à noite pelas ruas desertas de Quioto.
Volta a chover forte e o prédio onde estamos serve agora de abrigo para a chuva. Murakami aproxima-se e me pergunta o que me leva à Quioto. Conto a ele que estou estudando literatura japonesa mais a fundo e que já li muitos livros seus, inclusive. Ele ri a princípio mas depois assume uma postura cabisbaixa. Quero perguntar-lhe o que ele também faz ali, quero saber o motivo de estar escondido. Mas não preciso ir tão longe.
Murakami me diz que está farto. Conta-me que o homem que o mundo vê nele não é o homem que realmente é. Murakami é visto como um homem de prêmios, de excelência e de virtude. Mas conta que preferiria continuar a escrever normalmente, como fazia antes de ser visto como um homem premiado. Enquanto acende mais um cigarro, seu terceiro talvez, me diz que anda em constante fuga. Não quer saber dos prestígios a ele designados, não quer saber do dinheiro que seu livro vendeu. Murakami conta que gosta de escrever sentado em seu escritório, onde pode escrever não como Haruki Murakami escreveria mas sim como um homem qualquer e comum. Como um homem desconhecido.
São onze horas da noite quando a chuva cessa e Murakami despede-se de mim. Diz que voltará para casa, escreverá um relato seu, expondo o verdadeiro autor por trás de suas obras e finalmente sairá de seu esconderijo. Eu digo a ele que sua vocação é ser romancista e ele ri. ‘’Talvez seja, meu caro. Talvez seja.’’
Fico parado por mais algumas horas no prédio abandonado, observando a claridade limpar o céu chuvoso. Haruki Murakami é um homem renomado, mas ninguém realmente sabe quem é o homem que anda sozinho à noite pelas ruas escuras de Quioto.
Haruki Murakami ainda é um desconhecido.
Louie Edmond
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