- Que tal? Bom texto, Mecânico?
- Sem Mecânico hoje, Morte.
E, de súbito, há narrador. Caíram as máscaras.
Talvez a oficina pareça diferente agora. Especial, de alguma maneira. Não importa: na porta da frente, a placa indica que está fechada.
- Hefesto! Que prazer tê-lo de novo!
- Hipocrisia, Tânatos. Atuar em meio aos deuses é um prazer seu, sabemos disso. Não minta: essa atribuição não é sua.
- Sem máscaras, então.
Sentados em pneus e bancos de madeira, a voz das divindades se fazia ouvir em meio a carros velhos e ferramentas penduradas. Seria o grasnar de um corvo? Ou só o furdûncio de um dia de mecânico?
- Porquê esse texto, Hefesto? Quero dizer, porquê esse em particular?
- Já acabaram as provas. As avaliações chegaram ao fim. Não há mais notas, compreende? Saber ou não a minha identidade não mais pesará no resultado. Minha história pode ser escrita com um pouco mais de liberdade.
- É hora de te levar, então?
- Não a mim, Tânatos. Quando me vestir novamente de Mecânico, você me levará. Sabe disso. Até lá, conto minha história para a morte.
- Muito bem, você queria falar de si. Conseguiu. Mas qual o argumento? Qual o artifício do Artíficie dessa vez? Porquê, até onde lembro, ainda tem as regras do jogo a respeitar.
- Sim, eu sei. Por isso, decido falar do meu prêmio literário.
- E qual o prêmio literário digno de um Deus?
- A imortalidade.
O silêncio que se seguiu poderia ser quebrado apenas pelo farfalhar das asas de um corvo. Ou o clangor de um martelo na bigorna. Nada se ouviu. Só o gritante silêncio na oficina.
- Julgo que enlouqueceu.
- Julga errado. Ou talvez... talvez o instinto de ser lembrado seja um delírio. Já disse, meu caro, da diferença entre um semideus e um Deus quebrado?
- É nisso que vem trabalhando, Artíficie? Pois nunca disse palavra sobre o assunto.
- É, é nisso. Lembra-se de Aquiles?
- Lembro-me unicamente de levá-lo.
- Exato! Levá-lo, tomá-lo, foi esse gesto, e nenhum outro, que faz com que qualquer um se lembre dele. Em meio a Tróia, de frente aos portões, ele não usaria a gloriosa armadura se não temesse a lança de Heitor. Ele só fora deslumbrante então pois sabia que logo seria mais um pedaço de carne em meio a chacina. Você, Tânatos, é o grande responsável pela glória da Ilíada e o ocaso dos Deuses.
- E em meio a tudo isso, onde entra essa sua ideia do Deus quebrado?
- O semideus têm a potência do divino e a certeza do encontro com a Morte – com você. Ele teme o que há depois dos seus portões, e com sua força, maior que a do mortal ordinário, faz o incrível. Porém, ao Deus quebrado está reservado um destino muito pior que a morte. Me falta a potência do Divino, a glória de me vestir como Deus, posto que sou manco. Mesmo um deus, quando coxo, quando corno, é bastardo. A certeza da morte me faria vencer as expectativas que recaem sobre mim. E essa jamais me encontrará. A divindade é um fardo para um deus quebrado, pois me afasta da morte. Meu pai e irmãos gozam da boa venturança de serem divinos. E, se tenho glória, ela cabe aquilo que faço, aquilo usado por outros.
- Você está amargurado.
- Sou corno, manco, e vejo minha arte enaltecer e destruir. Eu me dou esse direito.
- Bem... Você ainda assim viverá para sempre. Porquê escolher logo esse prêmio?
- Não, Tânatos. Eu sobreviverei para sempre. Os homens me esquecerão, e não há vida sem eles. Se esquecem do artíficie, do professor, da mão que molda... Nunca do vaso chinês. Você não entenderia. Você é a constante dos homens.
- Como quer isso, então? Como almeja viver para sempre?
- Com você.
Era como se as engrenagens começassem a se mover, os mecanismos de uma grande ferramenta.
- É essa a sua ânsia?
- Ser lembrado? Achei que fosse a de qualquer escritor.
- Por isso a morte? Por isso estou aqui?
- Exato. Meu prêmio é a imortalidade. Viver para sempre, nas lembranças dos homens. É como um japonês, que para saber se escreve bem, manda seu livro à uma editora. Para saber se vivo bem, lanço minha vida em suas mãos. Dirija minha vida, a mim, o Mecânico, o tosco, o manco, atemporal. Mas, para ter a glória que merece ser lembrada, preciso daquilo que anima os semideuses. Para contar uma história que merece ser lembrada, preciso de seu final.
- Em suma...
- Preciso de você.
Houve silêncio. E, nele, uma troca de sorrisos; deste, tímido; daquela, amigo.
- A morte acabou de me sorrir?
- Sorri. A todos aqueles que sabem morrer. E está aprendendo, Artíficie. Posso te contar um segredo?
“Só se sabe morrer aquele que aprendeu a viver.”
- Por favor. Sem formalidades. Chega de Artíficie. Fiquemos com “Mecânico”.
O Mecânico e O Corvo
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