A imagem não faz barulho, não grita. A imagem é pausa, é silêncio que oportuna reflexão. Chama atenção única e simplesmente por ser retrato da vida, por ser um click, um breve stop no cotidiano corrido. Retrata um momento específico que, muitas vezes, é invisível, ou melhor dizendo, imperceptível a nossos olhos apenas atentos pelo geral. Antigamente, corriam e benziam-se das fotografias. Por quê? Supostamente, elas arrancavam-lhes suas almas. Ora, não entendo o motivo de hoje não o fazerem mais, a foto de fato carrega com si a alma do captado. Quando disse que era silenciosa, não quis dizer que trazia silêncio. Vozes ecoam em nossas mentes, sentimentos são lidos, relidos, transmitidos, questionados e até mal entendidos.
Sempre tive essa noção e cresci amando a fotografia, mas não sou profissional, nem sei de termos técnicos. Minha maior ligação com essa arte não passa de ficar viajando na galeria do meu celular, vendo as fotos que tiro de uma coisa boba daqui e dali até pegar no sono. Mas essa paixão pela foto me levou a um ato de obsessão. Era domingo, Copacabana, Cidade “Maravilhosa”, todos gritando o já até cotidiano “fora Temer”. No início, me juntei a ele por questões de segurança. Não sou leigo em manifestação, sei como a repressão funciona. O uniforme que trajava, o papel que carregava embaixo do braço e a câmera sempre em mãos, os fazia parecer, pelo menos para mim, mais seguro e protegido. Então não me acanhei a me juntar e ficar na cola daquele suposto fotojornalista, usando-o de escudo por assim dizer. Até aí tudo bem. Mas minha crise de psicopatia começa quando já tinha me afastado para comprar uma água e algo me chama atenção. Curiosamente, em meio àquele caos, ele começara a fotografar prédios. Sim, prédios. Não reconheço os motivos para tal, mas exatamente essa pulga atrás da orelha que me faz ter vontade de segui-lo. Sou amante da fotografia e encontrei ali, perto dele, uma certa segurança. Estou apenas unindo o útil ao agradável. E não posso deixar de citar que maratono séries de perseguição nas horas vagas.
Considero-me louca por estar entre o perigo e confusão de uma manifestação e, ainda assim, tentar seguir uma pessoa que, não obstante, vai em busca da confusão. Mas permito-me ignorar essa informação e acreditar que imprensa tem sim seus privilégios nesta dada situação. O homem continua, tira fotos de pequenos detalhes, coisas mínimas, elementos da natureza ou até daqueles botons que são vendidos com temáticas sociais. Diverte-se com alguns cartazes que fotografa. Quando ri tem a estranha mania de bater palma e fechar os olhos. Esse me parece ser o único momento em que descansa o olhar. Claro que ele pisca, mas até nesses instantes seu outro “eu” está ali, posicionado na parte direita do rosto, bem no espaço em que seu nariz, curiosa e comicamente, se entorta para o lado oposto. Como se lente e olho não se distinguissem mais. A prioridade era conseguir provas, pequenos recortes que pareciam vir a comprovar sua visão do mundo. Casou-se, então, humano e máquina num ato: fotografar.
Ele para, parece ter encontrado um conhecido. Gesticula e sorri muito, mantém sempre as sobrancelhas arqueadas. É um homem engraçado e seus cabelos grisalhos conseguem ser passados em branco na imagem que transmite de um espírito jovem e de alto astral. Alguma confusão parece se armar, ele se atenta a captar tudo e eu insisto em ir atrás. Muito gás, muito barulho, com certeza eram eles, a polícia. Acontece o já esperado, já sem visão nenhuma, vou correr e tropeço na subida da rua para a calçada. Dominada pela espetacular ação do fotojornalista e desatenta a confusão, me esqueço que sou “frágil”, sou preta, mulher, favelada, estudante e agora, com um tornozelo torcido, ainda mais propensa a ser alvo da polícia. Além disso, para completar, já não enxergava o homem. Vou ficando para trás da manifestação e mais perto dos fardados. Uma confusão muito intensa se forma entre um grupo de estudantes e a polícia, que, para variar, responde com mais violência. O homem por mim antes perseguido estava lá, no olho do furacão. Todos correm, eu obviamente também tento, mas mal consigo pisar. Uma pessoa me oferece ajuda, era ele, o fotojornalista. Não faço cerimônia em aceitar, meu braço é passado por trás de seu corpo até minha mão se apoiar em seu ombro oposto. Ele vai me auxiliando a correr sem jogar peso para meu pé machucado. Estava quente, meu corpo esquenta e a dor não é mais tão forte. Agradeço e digo que dali já consigo ir sozinha, mas antes me desculpo por ser responsável pela provável perda de grande material em potencial para ele. O homem já não tinha mais suas sobrancelhas arqueadas, sua voz e olhar abaixaram-se e ele me responde: Cara, eu te digo que o Brasil não é pobre, ele é pobre de justiça e eu, apesar de reconhecer o que faço como ato político, não consigo ser um fotojornalista indiferente.
Amora Flor
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