sábado, 3 de junho de 2017

Sem Disparo

Era negro o matiz. Escuro era o tom. Noite de protesto. A luz amarelada dos postes já não iluminava meu caminho. Garrafa na mão, em chamas. Chamo um colega, sem resposta. Não sei onde estou. De dentro da fumaça, posso ver pela fresta da balaclava um monstro incandescente. Patrimônio público. Patrimônio de quem? Queima. Em meio à névoa densa, vejo uma silhueta delgada se atirar em direção à confusão. Clique. Ouço a marcha dos agentes. Explosão, choque! Surdez momentânea, bomba. Meu corpo no chão, alguém se aproximava com uma arma na mão. Gás de pimenta poliniza o ar, olhos lacrimejam, não consigo enxergar...  

***
Conheci Alberto Veiga em uma palestra na faculdade, enquanto esperava por um espectro diferente. Eu, negro, secretamente engajado na luta entre os blocos de poder, preparado para fazer perguntas que lhe cortassem a carne. Não de Alberto, homem comum, mas do espectro. Questões que tornaram-se vazias. Estava desarmado. Alberto era um substituto.

Parecia alguém de quem a turma esperava mais. Ou seria menos? A primeira contradição da noite. Mais polêmica e menos humanidade era o que esperávamos. Normal. Mais à fundo, no entanto, ledo engano. Sempre fez o que lhe satisfazia. O surf, a biologia, a fotografia… ações que parecem unidas por algo. Há um lirismo em sua vida, que não os da vida, uma leveza que não é guiada, mas naturalmente traçada. A comunhão entre os elementos e a natureza - o ativismo em prol da vida. A união entre o visual e a política - a arte à serviço da crítica.

Profundidade, dimensão. Distância focal. No campo de sua vida, para acontecer, tudo parecia carecer de maior profundidade. Complexidade. Plano bem definido, clara nitidez. O ativismo como paz de espírito. Luz. Diafragma aberto.

Homem de discursos. Alguém que não sabe dizer se o reflexo de seus ideias são um obturador que lhe dá mais ou menos oportunidades. Sua crítica preenche seu trabalho. Não briga por espaço, alta exposição. Outra contradição. Como tornar seu trabalho sustentável sem saber destes detalhes? Dizem que todo clique tem uma história. De certo, sua composição fala de sua trajetória. Lugar de fala.

Objetiva, lente que corrige aberrações cromáticas. Lente angustiada, que enxerga o tecido social distorcido. Visão que denuncia aqueles que forjam uma realidade cinza. Croma original alterado, contrastado. Objetivo, propósito: ler o mundo em imagens. A fotografia como discurso.

Memória fotográfica do Brasil. Perspectiva. Retrato histórico, a mesma fotografia de décadas atrás. Plano de fundo? A rua, que em seu concreto faz jus às cores da bandeira. Alguém diria que tão cedo do planalto emergiria novamente o chumbo e do asfalto brotaria a cor? Caras-pintadas mais uma vez.

Fotografia: momento eternizado. De quem se recorda? Aquele que clica ou apenas o enquadrado? Alberto não busca ser lembrado - e talvez por isso o seja. O homem, a máquina e o cenário - a regra dos terços para a composição perfeita. Um sonho? Correção de cor. Alguém que não persegue prêmios e glórias - faz aquilo que gosta.

Alguém como todo mundo. Comum, incomum, contraditório. Único.

***
Sem disparo.
Em frações de segundos, notei que o homem que envergava a câmera à minha frente não é do tipo que ganha prêmios. É do tipo que estende a mão. Um piscar de olhos, tomada de decisão: não fez a foto, ajudou-me a levantar do chão

Setekh, O Redimido

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