- Sempre, Corvo. Sempre um arrependimento. Um dos motivos de não olhá para trás.
- É, se ele tivesse olhado talvez fosse diferente.
- Talvez.
- Mas conte, Mecânico. Vamos revelar, como era dito no seu tempo, essa história em um clique.
- Bem...
“Eu trabalhava com os
milico na época. Não, não me orgulho. Não era o tipo de coisa que
uma pessoa de bem devia fazê, mas eu tava lá. Nas manifestações,
eu tava lá. Acho que é por isso que nunca me manifestei – não
tenho cara de pau pra isso. E um dia em especial, eu lembro bem –
era quando eu tava do lado de lá da câmera.”
Do Lado de Lá.
Não dá pra se fazer
seu perfil sem contar uma história. Uma história em um “clique”,
ele disse, e logo um clique meu, do Mecânico. O meu “clique” foi
o “clique” do gatilho: naquela época era o que eu fazia. E
muitos eram os “Betos” na mira da arma em 64 – ela nem sempre
era de borracha. Ela quase nunca era de borracha. Não dava tempo
para os “Betos” da época olharem assustados quando de frente
para a arma.
Eles eram os mesmos, os
Betos de 64 e os Betos de agora. Não diziam “progressistas”,
porquê a esquerda não podia estar mais suja que os milicos, então
se assumiam esquerda. Não tinham uma opção de analógica ou
digital, então era uma verdadeira guerra se atirar em frente a uma
tropa.
Usavam as mesmas botas,
sempre as botas. Um grande repórter já disse que os pés são os
mais importantes para um correspondente de guerra – a guerra urbana
brasileira não fica muito atrás. A guerra pela liberdade, muito
menos.
Calças jeans, meio
surradas do movimento, boas para o frio da noite, quando o sangue
esfriasse, boa relação mobilidade/resistência para quem se atira
no meio do confronto. A calça se disfarça bem na multidão, fosse
em 64, fosse agora – muitos contextos cabem a calça jeans. Nisso
era bem fácil se esconder.
Mas o moletom não. Não
usavam muito isso em 64 – mas a cor é marcante, sabe? Ele mesmo
disso, o Beto: a cor é marcante. Vermelho, rubro, carmesim, até
mesmo um laranja mais escuro e estava pintado o alvo. Hoje o alvo
continua vermelho, mas naquela época atirávamos diferente. Também
tínhamos medo da câmera, mas nosso medo era licensa para matar.
Os fios brancos não se
viam tanto assim nas ruas, essas medalhas de idade que ele enverga
hoje. Era mais comum de se ver nas lideranças, não muito aqueles
que protestavam. Aqueles que expunham tanto a cara a tapa. Nariz
grande, cabelo encaracolado, preto, mechas brancas. Ele tinha traços
caídos, como de quem estivesse acostumado a relaxar, a descansar.
Normal para aqueles que recebem e vivem da adrenalina de seus
ofícios. Estranhei, é verdade, vê-lo então, e vê-lo agora. Mas,
Beto é Beto, e esperar que ele não estivesse na manifestação era
esperar muito pouco.
Não deu tempo, em 64,
de ele colocar a mão na cabeça para pensar, como costuma fazer. As
sobrancelhas levantaram, mas não eram para enfatizar ideias, como
ele faz durante uma conversa. Tampouco ouvi aquela risada rouca,
grave, retumbante, que ele dá quando o humor é sincero – bem
diferente daquela risada mais tímida e fina que dá quando está
constrangido ou rindo de uma piada interna.
Ele fechou os olhos e
fez sua história com seus cliques, enquanto eu fiz a minha. Saímos
de lá, eu e o pelotão, com um Beto a menos. Não me orgulho disso.
- Dele?
- De quem mais? De você, que puxou o gatilho?
- Mas você também tava lá, Corvo! Porquê não fala da sua participação?
- Porquê eu estava fazendo o meu trabalho: empoleirado no cano da sua arma. Agora deixe-me contar o que eu vi do lado de cá da câmera.
Do Lado de Cá
Naquele dia em 64 eu
estava empoleirado no cano da arma. Era dia de serviço. Hoje, porém,
eu também fui trabalhar, mas pra um serviço diferente. Quem estava
morrendo era a democracia, e eu estava empoleirado na câmera do Beto
para vir levá-la.
Já acompanhei o Beto
várias vezes, é verdade. Teve uma vez em que ele matou um biólogo
para que nascesse um fotojornalista – ledo engano, o meu. O sacana
me enganou direitinho, e em toda foto que tirava deixava entrever
aquele biólogo que eu não consegui levar. E eu bicava nervoso a
câmera, puto de ter sido deixado pra trás.
Em outra vez eu tinha
vindo buscar a ética dele – essa ai eu não ia deixar escapar.
Coisa de fotojornalista, dia sim dia não eu tenho que ir buscar sua
ética. Lembra daquele cara que deixou a criança de comida pros
abutres, aqueles sem-vergonha? Então, a ética dele tava deliciosa.
Era pleno protesto das Diretas Já, esse de pouco tempo, e choveu
bomba perto da mãe com a criança e o carrinho de bebê. Nossa,
aquilo ia ser uma puta foto! E o filha da mãe me enganou de novo:
tive que me contentar em devorar, naquele dia, o fotojornalista:
Beto, O Ético, ajudou a família. Engraçado que depois ele não
sabia dizer se era o mínimo ou o máximo que poderia ter feito.
Tentei pegar o ativista, o posicionado, vir dar umas bicadas no Beto
que balançava uma bandeira. Me frustrou de novo. “Meio Ambiente é
um ato político” era seu argumento que o defendia de ser
dilacerado por mim quando biólogo – vinte anos de carreira para
que trocasse de máscara e virasse ativista abertamente, usando das
fotos para contar sua história. “O
que você sente na manifestação? Um puta medo. E depois uma porrada
de xingamento”. Dá pra levar um ativista desses?
Irmão,
tio, marido, filho, todos esses são traços de Beto que ainda não
consegui me livrar – mas ai deixo ao tempo para resolver isso.
Ainda não é hora. Embora ele não goste do peso do sobrenome –
tanto no dele quanto no de políticos – leva o legado do pai, esse
eu nunca tentei extirpar. Tá muito entranhado, ia ter que tirar
junto com as entranhas. “O fotojornalismo me trouxe de volta”.
Fiquei fulo! De volta, quando eu tinha que comer! E não conseguia
bicá-lo – tentei por meio de policiais, por meio de uma cidade
perigosa, e nada. Ele simplesmente não se deixa morrer.
Tentei
matar seus sonhos também, mas ai residia o problema: “coloco meus
sonhos na terra e meus pés nas nuvens”. Como se mata isso?
- Tantos lados, não, Mecânico?
- Um bocado.
- Dois lados de uma câmera, dois lados de uma arma. Mas não chegamos a responder, chegamos? Quem te mandou matar o Beto?
- Não chegamos. Não que faça diferença. Sempre muda quem manda matar o Beto, mas sempre mandam matar um Beto. Em 64 um Beto morreu, mas agora?
- Agora temos ótimas fotos. E agora temos um “Lado de Cá” da câmera.
O Corvo e O Mecânico
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