sábado, 3 de junho de 2017

Mandaram Matar o Beto


- Um de seus arrependimentos?
- Sempre, Corvo. Sempre um arrependimento. Um dos motivos de não olhá para trás.
- É, se ele tivesse olhado talvez fosse diferente.
- Talvez.
- Mas conte, Mecânico. Vamos revelar, como era dito no seu tempo, essa história em um clique.
- Bem...
“Eu trabalhava com os milico na época. Não, não me orgulho. Não era o tipo de coisa que uma pessoa de bem devia fazê, mas eu tava lá. Nas manifestações, eu tava lá. Acho que é por isso que nunca me manifestei – não tenho cara de pau pra isso. E um dia em especial, eu lembro bem – era quando eu tava do lado de lá da câmera.”

Do Lado de Lá.

Não dá pra se fazer seu perfil sem contar uma história. Uma história em um “clique”, ele disse, e logo um clique meu, do Mecânico. O meu “clique” foi o “clique” do gatilho: naquela época era o que eu fazia. E muitos eram os “Betos” na mira da arma em 64 – ela nem sempre era de borracha. Ela quase nunca era de borracha. Não dava tempo para os “Betos” da época olharem assustados quando de frente para a arma.
Eles eram os mesmos, os Betos de 64 e os Betos de agora. Não diziam “progressistas”, porquê a esquerda não podia estar mais suja que os milicos, então se assumiam esquerda. Não tinham uma opção de analógica ou digital, então era uma verdadeira guerra se atirar em frente a uma tropa.
Usavam as mesmas botas, sempre as botas. Um grande repórter já disse que os pés são os mais importantes para um correspondente de guerra – a guerra urbana brasileira não fica muito atrás. A guerra pela liberdade, muito menos.
Calças jeans, meio surradas do movimento, boas para o frio da noite, quando o sangue esfriasse, boa relação mobilidade/resistência para quem se atira no meio do confronto. A calça se disfarça bem na multidão, fosse em 64, fosse agora – muitos contextos cabem a calça jeans. Nisso era bem fácil se esconder.
Mas o moletom não. Não usavam muito isso em 64 – mas a cor é marcante, sabe? Ele mesmo disso, o Beto: a cor é marcante. Vermelho, rubro, carmesim, até mesmo um laranja mais escuro e estava pintado o alvo. Hoje o alvo continua vermelho, mas naquela época atirávamos diferente. Também tínhamos medo da câmera, mas nosso medo era licensa para matar.
Os fios brancos não se viam tanto assim nas ruas, essas medalhas de idade que ele enverga hoje. Era mais comum de se ver nas lideranças, não muito aqueles que protestavam. Aqueles que expunham tanto a cara a tapa. Nariz grande, cabelo encaracolado, preto, mechas brancas. Ele tinha traços caídos, como de quem estivesse acostumado a relaxar, a descansar. Normal para aqueles que recebem e vivem da adrenalina de seus ofícios. Estranhei, é verdade, vê-lo então, e vê-lo agora. Mas, Beto é Beto, e esperar que ele não estivesse na manifestação era esperar muito pouco.
Não deu tempo, em 64, de ele colocar a mão na cabeça para pensar, como costuma fazer. As sobrancelhas levantaram, mas não eram para enfatizar ideias, como ele faz durante uma conversa. Tampouco ouvi aquela risada rouca, grave, retumbante, que ele dá quando o humor é sincero – bem diferente daquela risada mais tímida e fina que dá quando está constrangido ou rindo de uma piada interna.
Ele fechou os olhos e fez sua história com seus cliques, enquanto eu fiz a minha. Saímos de lá, eu e o pelotão, com um Beto a menos. Não me orgulho disso.

- Uau, Mecânico, quase dá pra sentir pena.
- Dele?
- De quem mais? De você, que puxou o gatilho?
- Mas você também tava lá, Corvo! Porquê não fala da sua participação?
- Porquê eu estava fazendo o meu trabalho: empoleirado no cano da sua arma. Agora deixe-me contar o que eu vi do lado de cá da câmera.

Do Lado de Cá

Naquele dia em 64 eu estava empoleirado no cano da arma. Era dia de serviço. Hoje, porém, eu também fui trabalhar, mas pra um serviço diferente. Quem estava morrendo era a democracia, e eu estava empoleirado na câmera do Beto para vir levá-la.
Já acompanhei o Beto várias vezes, é verdade. Teve uma vez em que ele matou um biólogo para que nascesse um fotojornalista – ledo engano, o meu. O sacana me enganou direitinho, e em toda foto que tirava deixava entrever aquele biólogo que eu não consegui levar. E eu bicava nervoso a câmera, puto de ter sido deixado pra trás.
Em outra vez eu tinha vindo buscar a ética dele – essa ai eu não ia deixar escapar. Coisa de fotojornalista, dia sim dia não eu tenho que ir buscar sua ética. Lembra daquele cara que deixou a criança de comida pros abutres, aqueles sem-vergonha? Então, a ética dele tava deliciosa. Era pleno protesto das Diretas Já, esse de pouco tempo, e choveu bomba perto da mãe com a criança e o carrinho de bebê. Nossa, aquilo ia ser uma puta foto! E o filha da mãe me enganou de novo: tive que me contentar em devorar, naquele dia, o fotojornalista: Beto, O Ético, ajudou a família. Engraçado que depois ele não sabia dizer se era o mínimo ou o máximo que poderia ter feito.
Tentei pegar o ativista, o posicionado, vir dar umas bicadas no Beto que balançava uma bandeira. Me frustrou de novo. “Meio Ambiente é um ato político” era seu argumento que o defendia de ser dilacerado por mim quando biólogo – vinte anos de carreira para que trocasse de máscara e virasse ativista abertamente, usando das fotos para contar sua história. O que você sente na manifestação? Um puta medo. E depois uma porrada de xingamento”. Dá pra levar um ativista desses?
Irmão, tio, marido, filho, todos esses são traços de Beto que ainda não consegui me livrar – mas ai deixo ao tempo para resolver isso. Ainda não é hora. Embora ele não goste do peso do sobrenome – tanto no dele quanto no de políticos – leva o legado do pai, esse eu nunca tentei extirpar. Tá muito entranhado, ia ter que tirar junto com as entranhas. “O fotojornalismo me trouxe de volta”. Fiquei fulo! De volta, quando eu tinha que comer! E não conseguia bicá-lo – tentei por meio de policiais, por meio de uma cidade perigosa, e nada. Ele simplesmente não se deixa morrer.
Tentei matar seus sonhos também, mas ai residia o problema: “coloco meus sonhos na terra e meus pés nas nuvens”. Como se mata isso?


- Tantos lados, não, Mecânico?
- Um bocado.
- Dois lados de uma câmera, dois lados de uma arma. Mas não chegamos a responder, chegamos? Quem te mandou matar o Beto?
- Não chegamos. Não que faça diferença. Sempre muda quem manda matar o Beto, mas sempre mandam matar um Beto. Em 64 um Beto morreu, mas agora?
- Agora temos ótimas fotos. E agora temos um “Lado de Cá” da câmera.  

O Corvo e O Mecânico

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