Na
mesma hora, Sombra abre as portas. O faz devagar, as grandes colunas de mármore
branco se abrindo aos poucos. Já está ali, querendo espiar pela fresta que
lentamente se abre, Luz, a dama em vestes claras sobre pele branca, a senhora
de olhos como os raios que rompem as nuvens e os cabelos como fios de prata. E
mesmo com os músculos tesos de Sombra, as portas demoram algumas horas a se
abrirem, revelando o esplendor da donzela que observa todo o céu, a terra, e as
pessoas ali presentes. Sombra jamais a vê – quando ela desponta, ele se esvai
como se nunca houvesse existido. Sombra só era presente quando faltava a Luz.
Sua
irmã demorava a chegar. Fogo vinha depois – e sua presença era ardente.
Incendiava de homens os corações, dava-lhe gana no olhar, infundia-lhes
propósito no coração. Por homens, a raça dos mortais, embora mais e mais fossem
aqueles tocados por sua graça. Ela demorava um pouco para chegar, preguiçosa, e
mais marota que sua irmã. Era morena sua pele, de cobre eram os fios de seu
cabelo, e seu sorriso, dizem as lendas que seu sorriso é visível por detrás dos
olhos de todas as mulheres, o sorriso de fogo, que fascina, e com o qual jamais
devemos brincar.
Quando
Fogo se juntava, ia-se a névoa matinal e os labores começavam. O vento
insuflava e soprava por sobre colinas, radiantes com a luz que se derramava
sobre elas, uma brisa quente, daquela que mexe com os cabelos alheios e que
aquece o coração. Penetrava esse vento nas vestes de homens e mulheres do campo
e na mente de desavisados poetas que se poriam a escrever, a compor, ou a amar.
Coisas características dos poetas. A dádiva desse vento inspirador era o
presente dessas donzelas ao mundo.
Porém
chegava a hora, conforme elas se cansavam de olhar para o mundo mortal, em que
deveriam se dirigir as suas camas, como qualquer um de nós o faz ao final do
trabalho. Luz era logo a que se retirava, indo e deixando as suas costas um
rastro de estrelas que ainda cintilariam até que as fosse buscar na manhã
seguinte. Não que isso importasse. Pois observando, ávida por antever a vida
comum dos mortais, Fogo os espiava pelas frestas da porta que começava a se
fechar. Ela espiava o que faziam com ela – as lareiras acesas que espantariam o
frio da madrugada, as tochas que iluminariam as ruelas, as velas que
celebrariam um aniversário. Havia, porém, alguém que ela esperava para ver mais
do que a qualquer outro.
Ela
flertava com ele sempre que sua irmã ia-se. Sabia que não podia tocá-lo – ele não
sobreviveria, pois mesmo em sua mais singela chama, havia luz. E ele não
suportava a luz. Mas, e como eu sei que todos vocês já viram algo assim, há,
entre sombras e fogo, uma sensual dança desenhada em meio a qualquer
superfície. As labaredas lambem o ar, quando se faz uma fogueira, e por toda a
volta, empolgadas, as sombras dançam ao seu sabor. A noite, aquela grande
sombra que se estende sobre o mundo, fica belíssima quando sobre ela são
atirados as fagulhas de uma fogueira, como estrelas que partem da terra para o
céu.
Luz
ia embora e logo Sombra aparecia. A ele cabia o eterno ofício de abrir e fechar
as portas do Sol. Porém ele também a olhava, amarrado, fadado como estava a
sempre fechar as portas, para o sorriso moreno de Fogo que lhe espiava. Ela
também não escondia seu desejo de lhe aquecer – via-o fadado ao frio da noite,
a solidão, sem jamais ser tocado por mãos que não quisessem rasgar as Sombras
por uma nesga de luz. Mesmo os homens não fechavam os olhos por muito tempo
para vê-lo – e quando o faziam, perdiam a consciência.
Ela
dele se apiedava – ele dela se enamorava. E todos os dias, no mesmo horário,
naquela pequena margem enquanto as portas do Sol não eram fechadas, eles se
amavam.
Trovador
Nenhum comentário:
Postar um comentário