sábado, 3 de junho de 2017

Na escalada

Era uma quinta-feira agitada. Dia 31 de agosto de 2017. A qualquer momento, o presidente iria fazer seu último discurso no cargo. Alberto Veiga, com sua blusa básica e de cor alegre, seus tênis e jeans que destoavam do ambiente formal, finalmente conseguira entrar no local onde o pronunciamento aconteceria. Não era vinculado a nenhum grande jornal, então tivera que esperar na fila para poder fazer seu trabalho.
Tentando deixar seu equipamento preparado, olhou através de sua câmera e se deparou com a mesma imagem que havia capturado um ano atrás: um salão vazio, algumas máquinas para registrar o momento que se aproximava e vários microfones. Alberto lembrou em como, na ocasião, a cena o havia perturbado. Para ele ficou clara a divisão de dois ambientes distintos no mundo da informação: um visual, que capturava gestos e feições, e que mesmo sendo um cenário imóvel, era capaz de permitir diferentes visões sobre ele; e outro baseado na fala, usada pela imprensa com diferentes fins, que passavam longe da mera reprodução. Seus pensamentos foram interrompidos pela conversa de outros fotógrafos que passavam. Olhando para eles e percebendo como o trabalho em comum lhes permitia facilidade na conversa, começou a pensar nas oportunidades que tivera em conhecer diferentes pessoas. Havia adquirido o hábito de conversar com os que estavam ao seu redor e que iriam compor seu trabalho. Imediatamente se lembrou de André organizador de um projeto que além de fornecer café da manhã para moradores de rua, realizava prática de yoga com eles. Ao lembrar da pequena reclamação feita por um dos praticantes, dizendo que sempre ficava dolorido com as aulas dadas, Alberto sorriu. Percebeu o estranhamento das pessoas ao redor com seu ato; ele sempre havia resmungado consigo sobre o próprio sorriso, que por fazê-lo diminuir os olhos a ponto de quase fechá-los, o levava a perder alguns segundos importantes de uma cena preciosa. No caso, o grupo ao seu redor o encarava não por uma questão estética, mas pela seriedade do ambiente.
O tempo passava e Alberto começava a mexer as mãos ansioso. Não era a mesma ansiedade que sentia quando estava prestes a começar a escalar uma montanha, mas sim quando já estava praticamente no topo, querendo saber se o desfecho de toda sua escalada teria um fim digno. O sentimento despertou nele certa nostalgia, a sensação de estar em contato com a natureza lhe era familiar, afinal havia trabalhado vinte anos como biólogo e até mesmo feito fotos em landscape. Queria fazer um trabalho mais ligado ao meio ambiente de novo devido a tamanha importância - inclusive política - desse assunto. Essa preocupação com o certo e a necessidade de cobrar que ele seja realizado, Beto atribuía tanto às suas experiências na faculdade, quanto à convivência com seu pai. Ele que havia sido sindicalista por muito tempo e que se inquietava fortemente ao se deparar com o que considerava grave.
Finalmente o presidente havia chegado, e com sua figura os flashes das câmeras. Conforme a quantidade de luzes ia aumentando, a realidade e a lembrança de situações passadas se confundiam na cabeça de Alberto. Os clarões das máquinas passaram a ser os das bombas de gás lacrimogênio soltadas por policiais. As elevações nas vozes dos jornalistas viraram os gritos feitos nas ruas por manifestantes. Todas as lembranças de manifestações que havia presenciado tomaram lugar da imagem real retratada por sua câmera nesse momento. Os protestos das pessoas, a violência da polícia, black blocs, ônibus queimados surgiram em uma sequência.
O presidente já havia subido no palanque, iria começar deu discurso. Enquanto esperava pela fala, relembrava as diversas fotos que já havia tirado, pessoas com quem havia conversado.

Watson Holmes

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