quinta-feira, 24 de junho de 2021

A fuga do mal

Os olhinhos da criança se abriram pela janela do ônibus escolar. Mais um dia sonolento. Ela

vivia no próprio mundo de inocência, onde todos eram bons e o mal vivia num calabouço,

longe da luz do sol.


Até que o mal se juntou aos raios de sol, batendo na janela, se espreitando pelos assentos.

Dois homens espancavam uma moça na calçada. A criança olhou em volta, assustada com os

gritos e tentou falar, mas a voz não saía. Então, percebeu que a mulher parecia não ter voz.

Afinal, dentro do ônibus ninguém a ouvia.


A moça se contorcia ao tentar se livrar dos punhos cheios de ódio, mas não adiantava. A

criança observava a cena com um olhar desesperado, se questionando como era possível

causar tanta agonia a um só rosto. Seus olhinhos viram quando o mal se livrou do calabouço e

se esgueirou pela esquina, envenenando a visão de quem por ali andava. Quem passasse pela

mulher nada fazia.


A cada soco, os berros dos homens soavam mais alto, como se fossem eles a roubar a voz

dela. A criança não compreendia as palavras ditas, mas sabia que nenhum deles se

arrependia. Ela sentia que a cada segundo em que os dois não eram interrompidos eles

cresciam, cheios de confiança em si, até se tornarem gigantes e a moça não mais resistir.


O veículo escolar cruzou a esquina como se nada tivesse acontecido. Os olhinhos

continuavam fixados na janela. Levaram-na pela mão até o portão da escola. A criança

caminhou pelos corredores e se manteve calada, enquanto o castelo que era sua vida

desabava. Teria o mal impregnado todos a sua volta, a ponto de não se afetarem com a dor de

uma desconhecida?


Lentamente, suas mãozinhas conseguiram reerguer os muros do seu castelo. Ela não podia

controlar o calabouço do mundo, mas do seu o mal não escaparia. Alguns anos depois, ainda

se pergunta se depois do ônibus seguir caminho, alguma mão foi estendida para ajudar a

mulher, se alguém poderia confortá-la. A criança decidiu naquele mesmo dia, que jamais se

calaria enquanto outra moça sofria.


Tela Azul

6 comentários:

  1. Não podemos mesmo nos calar. Hoje pode ser com ela, amanhã pode ser com a gente.

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  2. Tela Azul, sim! Essa luta não é uma guerra perdida. É possível a mudança, e começa com a gente. Gostei muito do texto, sério.

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  3. Que texto lindo e emocionante. Que continuemos falando e gritando quando for necessário para ajudar quem precisa, parabéns pela consciência e a luta nunca acaba. Forças para nós!!!!

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  4. Achei seu texto muito emocionante e angustiante ao mesmo tempo! Precisamos sempre gritar para ajudar quem precisa. Quem cala, consente!

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  5. Não sei se é real ou ficção, mas as vezes tenho essa dúvida, será que as pessoas lembra quando foi que percebeu que o mundo não era um mar de flores ?. Belo texto!

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  6. Você descreveu o sentimento de angustia tão bem que no meio do seu texto fiquei sem ar. Que a gente não se omita perante o absurdo.

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