quinta-feira, 17 de junho de 2021

Uma Bic pra me escrever

Primeiro, disseram que o irmão morreria de ciúmes. Depois, que daria trabalho e

o papai teria que “ficar ligado”. Não demorou para as apostas de namoradinhos

chegarem. Na escola, a aluna exemplar que a mamãe gostava de exibir. A criança

prodígio alimentava-se de anseios adultos. As ‘Barbies’ eram substituídas por

promessas de um futuro brilhante. Confundiam talentos extraordinários a meras

facilidades. Pouca idade; muita expectativa. Alguns anos mais pra frente, avançaram aos

palpites profissionais:


- Desse jeito, pode ser modelo!

- Dança? Vai querer ser dançarina?

- Atriz! Sua cara!

- Tão estudiosa... Pode ser professora.

- Médica.

- Engenheira.

- Advogada.

- Arquiteta.

- Jornalista.


Jornalista? Ok, jornalista – decidi. De repente, o “bolão” da minha vida

transformou a gênese de um sonho em um projeto de gente grande. “Pra ser jornalista

tem que ler muito”, então, catava os livros difíceis da biblioteca. “Gosta de política? É

muito importante na profissão”, por isso, passei a trocar os desenhos pelo Jornal

Nacional. “Melhore a escrita se quiser ser bem sucedida”, nesse caso, desenvolvi quase

que uma dependência em escrever sobre qualquer banalidade cotidiana. Aos poucos, fui

abrindo mão de pequenos prazeres da infância, da mente fértil e criativa, para executar,

passo a passo, uma receita de sucesso infalível.


Até que a adolescência veio chegando de mansinho, obediente e dócil. As ideias

engessadas e suposições hiperbólicas não aparentavam mais tão atraentes. A nova fase,

dos hormônios aflorados e primitivos impulsos de rebeldia, trazia outras exigências que

borbulhavam na cabeça: primeiro beijo, amores platônicos, novas amizades, virgindade

e mais algumas futilidades que pareciam os maiores problemas do mundo. Os

primórdios da independência, da autonomia no entendimento do mundo e,

principalmente, das vontades próprias - talvez, as primeiras – eram bem mais

assustadores do que empolgantes.


Aqueles pitacos continuaram, só que dessa vez não incluíam somente familiares,

também contavam com a contribuição ativa de amigos, professores e terceiros. Me vi

mergulhada em um constante e atormentador processo de autocobrança. Sentia que

precisava ser excelente em tudo que me coubesse: a melhor amiga, a melhor namorada,

a melhor aluna, a melhor filha. Queria estar em todos os lugares: nas festas, nas aulas,

nos almoços de família e nos encontros românticos. Planejei aproveitar a juventude

selvagem, mas também focar nos estudos e conquistar o posto de ‘nerd’ da turma.

Acontece que, evidentemente, não alcancei nem metade do que esperava. Busquei tanto

a perfeição e temi tanto decepcionar as projeções alheias que me perdi de mim mesma.

Internalizei sonhos que nunca me pertenceram, aceitei vínculos vazios por status,

acreditei em planos que não eram meus e sustentei relacionamentos por medo da

rejeição. As várias demandas inalcançáveis, que sempre foram tão presentes aqui, me

afastaram das canetas que escrevem a minha própria história. Agora, vou catando pelos

cantos da casa uma Bic Cristal com a tampa mordida, revirando os potinhos e

procurando dentro dos estojos, na esperança de descobrir quem eu realmente sou – ou

sempre fui e só não sabia.


Bic Cristal

21 comentários:

  1. Bic eu adorei tudo do seu texto! O ultimo paragrafo foi o meu favorito e entendo muito bem como é se sentir assim, mas aqui estamos, vivonas e vivendo. Sua escrita é maravilhosa, parabens!

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  2. Maravilhoso!! Você é ótima com as palavras, Bic!! Parabéns pelo texto.

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  3. Eu super me identifiquei com seu texto, também fui muito cobrada, principalmente com as notas, 8 era obrigação e no 9 até merecia um parabéns, então te entendo muito. Que possamos achar nossas "Bics" e ainda escrever coisas lindas nas nossas histórias. Sucesso para você!!!

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    1. Que bom que gostou, Sinceron@. Estou na torcida para que nossas canetas de tampa mordida não se percam mais.

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  4. Oi, Bic! Gostei muito, seu texto me pareceu como se fosse o primeiro passo (ou pelo menos a consolidação dele) nesse caminho. Boa sorte para gente!

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  5. Bic, como é difícil lidar com as expectativas (tanto alheias, quanto próprias). Você descreveu isso muito bem. Quanta coisa ao longo da nossa vida a gente não fez pra agradar os outros?
    Que com essa caneta cristal você possa desenhar sua nova (ou não tão nova assim) identidade.

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  6. Bic, eu me identifiquei muito com o que foi relatado sobre a sua história no seu texto! Assim como você, eu sempre me cobrei muito e sempre quis atingir muitas metas, querendo que os outros criassem expectativas sobre mim e querendo ser capaz de alcança-las. E, dessa forma, eu imagino que todo esse esforço tenha sido muito cansativo para você também. Uma dica que eu poderia dar para você, que é o que funciona comigo, seria para você parar de vez em quando e visualizar "onde você está?", "onde você quer estar?" e "o que você tem feito para isso?", e seja sincera nas suas respostas. As vezes, as expectativas dos outros realmente batem com as nossas, mas lembre-se de por as suas em primeiro lugar! Boa sorte com a sua caneta!

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    1. Muito obrigada, Mundo! Pode ter certeza que vou levar essas perguntas daqui pra frente. Tmj!

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  7. Bic Cristal, que texto óóóóóótimo!! Adorei como você estruturou e desenvolveu a sua história. Parece que o tempo dedicado a escrever sobre coisas do cotidiano não deve ter sido tão ruim assim, será? Muito bom! Continue assim, beijos.

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    1. Obrigada, Perua! Fico muito feliz que gostou. Pelo menos prestou pra algo, né? Rs.

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  8. Oi Bic, amei o seu texto. Passamos por fases na vida e precisamos abrir mão de algumas coisas, me identifiquei bastante.

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    1. Muito obrigada, Mamicota! Que bom que gostou e se identificou.

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  9. que texto lindo, sério. do início ao fim. com certeza foi um dos que mais me tocou e mais gostei de ler!

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