quinta-feira, 17 de junho de 2021

Estados inteiros afundam em dias de domingo

Existe uma infinidade de coisas que me incomodam. Os dedos dos pés meio tortos, as

cicatrizes nos joelhos, o formato das unhas das mãos, o sorriso que não se encaixa no meu

rosto, o humor peculiar, a vontade de ser o melhor que eu poderia ser sem nunca conseguir ter

voz pra vomitar o tanto de palavras que guardo em um baú imaginário dentro de mim e a

quantidade exagerada de palavras — poderia até ser considerado crime — que eu uso pra

descrever algo.


E existe esse verso de um poema da Elizabeth Bishop que está sempre na minha

mente. “A arte de perder não é nenhum mistério”, ela diz. É a única frase que eu guardo de

uma infinidade de coisas que já li, de entrevistas a contos a romances a poemas a receita de

comida caseira para gatos. E eu penso sempre sobre as pessoas que já perdi, não sobre os

mortos, mas sobre os vivos. Acho que perdi uma dúzia de boas conversas sobre o tempo e

uma outra dúzia de abraços e nunca soube lidar com a culpa de querer desaparecer de perto

das pessoas depois de um tempo. Eu nunca soube lidar direito, ou melhor, eu não tenho

minima noção de como lidar com a ideia de gostar de alguém, o que é bem estranho de se

pensar quando só se tem dezoito anos mal vividos de vida. Na realidade, pensar nisso agora

me causa um desconforto horrível no estômago e uma vontade confusa de chorar, porque eu

sei que o meu medo é de ser como os meus pais. “A arte de perder não é nenhum mistério”, a

Elizabeth Bishop diz, e eu penso na infância em que perdi todo um universo de dicas de que

aquele relacionamento entre eles não estava funcionando, em que a voz carregada de desprezo

e as discussões que duravam horas não eram temporárias. E é bem estranho (acho que

“estranho” é a palavra do dia hoje) pensar como os adultos às vezes não fazem ideia de como

resolver os próprios problemas, menos ainda falar sobre eles.


E no fim, a verdade é que não tem nada a ver com Bishop ou com os dedos dos pés

meio tortos, mas me dói saber que eu não sei gostar das pessoas, não romanticamente falando,

porque depois de algum tempo — que podem ser dias, semanas ou meses — a única coisa que

eu consigo pensar é “e se eu for como os meus pais?”. É uma questão bem idiota, eu sei, ou

talvez seja a questão mais importante de todas e eu só não sei usar as palavras direito, mas eu

não quero ser nenhum Murakami ou Evaristo ou Goethe. Mesmo assim, eu sempre fico me

imaginando como uma cidadezinha no centro de um estado inteiro, sem país ou continente,

que vai afundando aos poucos, até se transformar em um falso iceberg no meio de um oceano

de ódio, sem “desculpa” ou “bom dia”, num dia silencioso de domingo.


Todos amam tomates

13 comentários:

  1. Oi Todos! Apesar de não amar tomates (so os cereja e os secos), o seu texto foi um dos meus favoritos! Me identifiquei muito e a forma que você retratou seus sentimentos me tocou bastanteee, acho que pela intimidade com o conteudo mesmo. Amei as citaçoes, estou ansiosa pra ler seus proximos textos :)

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    1. muito obrigada e eu te perdoo por não gostar de tomates kkkkk (eu secretamente já sou sua fã e tô doida pra ler seus próximos textos também)

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Caramba, Todos! Que texto incrível. Muito íntimo e verdadeiro. Lendo, me senti quase que dentro da sua cabeça. Acompanhando os raciocínios, conclusão a conclusão, dúvidas e questionamentos também. Amei a referência a Bishop. Parabéns, viu?
    OBS: Eu odeio tomates mas podemos ser amigos.

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    1. eu aceito a amizade (apesar do ódio injusto por tomate)! e obrigada pelo elogio, de coração. eu quase não enviei a crônica porque, por mais que eu goste de escrever, sempre acho horrível tudo que escrevo. é como se eu não soubesse bem lidar com as palavras ou como se elas fugissem de mim, então super obrigada outra vez ❤

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  4. O texto está muito profundo e nos faz entrar nessa confusão de perguntas, respostas e angustias de uma forma magnifica, parabéns por deixar transpassar tantas coisas em poucas palavras.

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  5. Todos amam tomates, eu estou completamente chocado com seu texto. Simplesmente incrível. Eu tinha escrito um comentário enorme mas eu decidi apagar rs. Queria deixar alguma mensagem profunda ou algo do tipo, mas é difícil ouvir alguma coisa quando a gente está se afogando. Só que é bom lembrar que depois de um domingo silencioso, tem uma segunda-feira barulhenta. Aguardo os próximos textos!

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    1. poxa, eu queria ter lido o comentário enorme :(
      e muito obrigada pelas palavras de conforto ❤

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  6. Todos, tenho sentimentos parecidos com os seus! Acredito que somos intensos demais, não que isso seja algo ruim, e, por isso, duvidamos que ao nos entregarmos para alguém, seja no quesito romântico ou não, que isso não será recíproco. Mas busco pensar que existem pessoas que vão nos querer tanto quanto nós vamos querer elas, e que tudo tem a sua hora. Além disso, não espelhe a relação dos seus pais em você. Ao fazer isso, você se coloca como igual e, mesmo que de forma inconsciente, vai buscar agir como eles num relacionamento. Boa sorte na sua caminhada!

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    1. eu vou guardar o que você disse dentro do peito, de verdade, mesmo sendo óbvio, era algo que não estava na cara pra mim até você comentar aqui e eu ler, muito obrigada ❤

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  7. QUE texto, Todos amam tomates! Amei demais, senti sua angústia junto com você.

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