sexta-feira, 28 de abril de 2023

Dor Fantasma

 Rômulo cumpre seus poucos ritos matinais neste sábado. Vai à cozinha, pega uma xícara do

café que Marisa deixou passado e rasteja em direção a sua sagrada sala incorrompida. Pisa

em um dos diversos bonecos de Franz e não consegue deixar de pensar que seu filho,

dormindo preguiçosamente no quarto ao lado, poderia ser o melhor intérprete do mundo se

parasse com essas bobagens e focasse na arte precisa da reprodução de peças seculares,

clássicas. Mas sabia da falta de disciplina de seu filho. Um indisciplinado não vai longe, não

importa quanto talento corra em suas veias.

Começa a trabalhar novamente na música que encerrará seu concerto revolucionário. 120

bpm. Concentra-se nas batidas do metrônomo. Alonga os dedos, as costas e o pescoço. A

mão começa a bater no peito, acompanhando o barulho constante. Ele sente as batidas do seu

coração acelerarem. Aceleram. Aceleram. Aceleram. Aceleram. Chegam a 120 bpm e

ultrapassam, não param. A dor se espalha por todo o lado esquerdo de seu corpo e a mão que

batia no peito segundos antes, agora o segura, como se pudesse acalmá-lo. O ruído do

metrônomo já não é mais reconfortante, só o faz lembrar da sua perda de controle sobre sua

vida.

Os minutos se passam. Os gritos se esvaem, como uma nota que acaba de ser tocada para

nenhuma plateia. Rômulo permanece ali, caído de seu banquinho, no chão frio, mas elevado,

tão perto de sua família, mas isolado. Não ouvirão suas súplicas, agora já baixas.Ninguém o

socorrerá. Não cometeriam tal infração de interrompê-lo em pleno momento de estudos.

O último batimento ressoa. Ninguém nunca mais ouvirá a música do coração desse pianista,

único capaz de interpretá-la. Sozinho, em seus pensamentos finais, o pobre homem só

conseguia pensar na peça, indecifrável aos seus contemporâneos, que jamais poderá

reproduzir para alguém. As batidas do metrônomo continuam sem falhas, impecáveis, assim

como Rômulo gostava de pensar que ele era.

-Camélia.

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