sexta-feira, 22 de abril de 2022

 FORASTEIRO


Quem conseguiu se olhar nas fotos das redes sociais e perscrutar seus poros até onde o espírito se esconde? Dizem que a câmera tem o poder de captar a nossa essência quando em mãos de um artista. Uns dedos livres sobre uma superfície aqui, um olhar perdido e  vazio ali, um rosto prostrado acolá. E, então, é capturada uma pessoa. Mas quão volátil pode ser o intrínseco de nossa existência! 


Quando pensei nisso pela manhã, logo me determinei a observar, minuciosamente, os  olhos e pele supostamente meus nas postagens, no intento de descobrir a matéria de que sou feito naqueles espaços virtuais.


Horas se passaram enquanto eu mergulhava naqueles relatórios de mim mesmo, que havia exposto gratuitamente. Só que, em algum momento, não pude esconder a surpresa ao perceber que em quase todos estava sorrindo. Observei o olhar alegre, o cabelo um tanto domado, a face dissimulada. Não me encontrei em lugar algum. Cadê meu eu melancólico e letárgico? A embriaguez escarlate que faz morada em minhas veias?  Não pode ser! Eu, que sempre me defini tão verdadeiro , havia me tornado  prosaico.


Poderia negar a minha responsabilidade e dizer que tem um intruso dentro de mim. Ou, então, que uma parte se desintegrou de meu corpo e anda seguindo modismos, envergonhando minha natureza ranzinza. Contudo, de nada adiantaria. A verdade me estapearia na cara cínica. Na pele, os meus motivos recônditos seriam expostos em letras garrafais: ANSIEDADE, INSEGURANÇA, DERRELIÇÃO.


Levo a mão à boca delicadamente e deixo que meus dedos belisquem meus lábios, até que eu sinta uma pontada de dor. Esse sim, sou eu. Na pungência, reconheço-me.

Por Liev Vitorino

3 comentários:

  1. Vitorino, gostei muito do seu texto! É realmente chocante parar pra analisar a imagem que construímos de nós mesmos e não nos reconhecer. Realmente pavoroso. Mas nesse tipo de rede social... É praticamente inevitável. Somos pressionados a isso. Parabéns pela escolha de palavras e pela forma como vc terminou o texto (sério, esse último parágrafo fechou com chave de ouro).

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  2. Liev, muito bom. Eu também sou culpada de ficar até tarde da noite observando cada minúsculo pedaço das minhas postagens em redes sociais, buscando qualquer defeito para jogar a culpa, apagando as fotos e jogando fora qualquer resquício desse alter ego que é qualquer coisa, menos eu. É reconfortante saber que existe um outro alguém que sofre dos mesmos males que eu. Sua estrutura é impecável, além do vocabulário rico e de dar inveja. Um texto fora do comum, de fato. Estou ansiosa para ler mais!

    Com carinho,
    Inez

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  3. Querido Liev, seu texto é incrível e conversa diretamente comigo. a sua escrita é ótima!

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