sexta-feira, 29 de abril de 2022

Toca Raul!


Ir ao karaoke é um dos programas mais divertidos que existem. Lá você encontra gente que de fato sabe cantar, gente que não canta nada mas adora fazer um show e animar a galera, encontra gente triste cantando músicas mais tristes ainda na intenção de afogar as mágoas, e diversas outras pérolas. O engraçado dos karaokês é que sempre tem um sujeito que puxa do fundo da alma, com toda a sua força ainda disponível, dotado de uma animação que só a embriaguez confere ao ser humano; aquele famigerado TOCA RAUL! A situação se torna ainda mais cômica a partir do momento em que alguém decide cantar alguma música do Raul Seixas, deixando nosso querido amigo bêbado tão feliz quanto quando seu copinho americano é reabastecido de cerveja.
Mas e o Raul hein...Seixas foi um cara à frente de seu tempo, arrisco dizer que foi Inclusive um filósofo da música. Suas letras traziam questionamentos, muita criatividade e abordam por vezes questões bem importantes. E sim, somos todos metarmofoses ambulantes, não só nós seres humanos, mas também nosso contexto em todos os sentidos. A mudança é uma das poucas certezas da humanidade, rivalizando apenas com ela, a morte. E mudanças e transformações definem a história da humanidade em todos os âmbitos imagináveis.
Talvez uma das descrições mais significativas de mudança que tenho conhecimento vem de Machado de Assis. Um homem, também, à frente de seu tempo e que documentou através da crônica "O jornal e o livro" uma mudança de paradigma interessante de seu contexto histórico e social.
Machado define a invenção da imprensa e popularização do livro com um ponto de virada na história da humanidade, um momento em que o foco das artes muda, momento que o conhecimento e leitura se tornam populares; o saber, enfim, se torna democrático. Não por acaso, Machado diz no texto "a humanidade, antes de tudo, é republicana". O ser humano não suporta viver por muito tempo sob o comando de líderes autoritários ou imerso na barbárie. Revoluções sociais ao longo da história mostram isso. E que revolução não representa mudança de paradigma maior do que a revolução francesa, uma das maiores formas de expressão da incansável busca pela democracia. Ali podemos dizer que a sociedade virou de cabeça pra baixo, que dirá Luís XIV que, digamos, não tinha mais cabeça pra esse lance de monarquia. E contida em todas essas revoluções em diversos campos há também, segundo Machado, a revolução da "verdadeira forma da República do pensamento", a reformulação dos Jornais e sua transformação na verdadeira representação da democracia, a real voz do povo, forma material da representação do conceito democrático. Os jornais, segundo Machado, mudariam a história da humanidade e, assim como os livros transformaram as artes e substituíram a arquitetura na maneira de se expressar; a verdadeira forma de expressão da República também viria a subsistuir os livros.
O imortal Assis não definia de fato o fim dos livros, mas sim uma mudança de paradigma nas formas de expressão. A visão de Machado estava longe de ser limitada, mas estava de certo confinada à seu contexto.
Todavia, o que me chama atenção acerca dessa exposição de opinião de Machado recai sobre a importância da democracia e a importância da função jornalística como um moderador, um vigilante, uma voz para aqueles que antes não possuíam direitos básicos nem noção do que seria uma vida digna. Machado exalta os jornalistas e os coloca em posição de destaque na sociedade, os valoriza de maneira tão bela e forte que a leitura do texto gera brilho nos olhos até do mais desacreditado no futuro.
Ah...o futuro, de certo terá mudanças, e a importância e função do jornal e jornalistas se transformará, mas acho que não cabe a mim teorizar e divagar sobre o desconhecido.
Bom, o que eu de fato sei, é que como o jornal, o karaokê também é um espaço democrático, onde todos cantam o que gostam e cantam até o que não gostam levados pela animação alheia, e isso é mais do que maravilhoso.
A hora da minha música já está chegando... tá na hora de terminar esse copo de cerveja...
Por Ford Prefect

3 comentários:

  1. Ford, seu texto captura bem a essência da familiaridade da crônica, de ser uma história com a qual possamos nos relacionar, e a sua ambientação da história funciona perfeitamente com o tema que você deseja abordar. Apenas elogios, parabéns!
    Com afeto, Argus.

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  2. Como uma boa apreciadora do karaokê, não pude deixar de ser deleitada pelo seu texto que, cá entre nós, é como uma bonequinha russa: a cada período, uma nova camada era aberta, até se fechar novamente no final. Acredito que crônicas sejam justamente sobre isso, sobre a capacidade de relacionar assuntos e criar interseções bonitas e bem feitas. Parabéns, Ford! Você fez isso! Uma crônica sobre uma crônica conseguiu encapsular o que é ser uma crônica — quantas camadas legais, não? Aguardarei por mais textos seus enquanto reservo minha música na máquina.

    Com carinho,
    Inez

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  3. Ford, gostei bastante da forma como você contextualizou e justificou a escolha do texto de Machado. Desejo-lhe muito sucesso no Jornalismo e nos karaokês da vida!

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