segunda-feira, 11 de abril de 2022

 Uma Notícia Tardia


     Acordei confuso, sentindo um cheiro impossível de misto quente. Um cheiro que eu não sinto há anos; um cheiro que nunca senti nesta casa.

     Ela precisa saber.

     Olhei em volta tentando me orientar, me apegando aos objetos no quarto, buscando me convencer de que o cheiro de misto quente era coisa da minha cabeça enquanto a lembrança do sonho que tive essa noite me atingia. Há meses que estou adiando dar esta notícia, mas depois dessa noite… Não posso mais adiar. Se não disser hoje, não direi nunca. Ela precisa saber.

     Me levantei e fui procurar o que comer. Preparei um café da manhã para ela também e esperei até que acordasse. Depois, sentei à mesa e a observei enquanto comia. Ela estranhou. 

– Que foi?

         Respondi que não era nada. Não queria estragar o dia antes que terminasse o café. 

– Você tá estranho…

     Continuei em silêncio. Ela não insistiu. Já faz um tempo que ando estranho. Ela terminou de comer e levou a ouça até a pia. Me levantei na intenção de acompanhá-la, mas mudei de ideia e retornei ao meu quarto. Mudei umas coisas em cima da escrivaninha de lugar e voltei a sair. Parei na porta da cozinha. Ela estava de costas para mim. Observei por mais um instante e a chamei baixinho, quase não querendo ser ouvido.

– Bia…

     Ela se virou na minha direção. Seu olhar inquisidor começava a adquirir ares de ansiedade. Tentei dizer mais alguma coisa, mas tudo o que consegui fazer foi repetir seu nome daquele mesmo jeito fraco.

– Carlos, o que você tem? 

     Tentei me lembrar da maneira como meu pai havia me dado a notícia: de repente; rápido  e objetivo. Uma péssima maneira de fazer isso, na minha opinião, mas eu não conhecia outra. Por isso fiz igual. Meus olhos carregados de lágrimas, os da minha irmã transbordando preocupação e medo.

– Nosso avô morreu.

     Primeiro ela me encarou como se o que eu tinha acabado de dizer simplesmente não fizesse sentido algum, como se pudesse ler nas lágrimas que agora rolavam rosto abaixo a razão de tal delírio. Em seguida, deu um berro de pavor e incredulidade. Corri o espaço entre nós, desesperado para abraçá-la e fazer qualquer coisa que pudesse fazê-la se sentir melhor, mesmo sabendo não haver nada que eu pudesse fazer.

     Choramos juntos. Lembrei que meu pai também chorou comigo quando me deu a notícia. Agora, como naquele dia, me perguntei o porquê de ele não ter entrado em contato, não ter chamado e avisado. Como eu queria ter estado lá, ao lado da cama de hospital, enquanto meu avô estava consciente e perguntando por mim. Apertei minha irmã com mais força enquanto murmurava mil pedidos de desculpas. Ela se desvencilhou do meu abraço e correu para o próprio quarto.

– Eu queria ter te contado antes…
– Não era você que tinha que estar me contando isso, você sabe disso!

     Ela bateu a porta, me deixando sozinho do lado de fora. Queria ficar sozinha. Sente no chão da sala e lá fiquei até ouvir sua voz vindo da porta fechada:

– Carlos… Onde ele está?
– Eu não sei… Mas posso perguntar. 

     Esperei que ela dissesse algo,nem que fosse um grunhido em concordância. Ela não emitiu nenhum som.

 Bia?
– Okay. Agora me deixa em paz.

     Continuei sentado ao lado da porta fechada. Mandei mensagem para o meu pai na esperança de que ele respondesse que meu avô havia sido cremado. Assim poderia parar de pensar no corpo do meu avô apodrecendo debaixo de sete palmos de terra.




-Akil Ubirajara

Por Akil Ubirajara


12 comentários:

  1. Querido Akil,
    Suas palavras me inebriaram com o peso delas. Sinto que tenha passado pela experiência de perder seu avô, apenas aqueles que já passaram pela experiência são capazes de entendê-la!
    Sei que não há palavras capazes de amenizar a dor, talvez a certeza de uma boa vida o console. Meus sinceros pêsames para o acontecimento e parabéns pela escrita!
    Verdadeiramente cativante!
    Com carinho,
    Shaolin, o matador de porco

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    1. Obrigado pelo feedback, Shaolin! É muito importante pra mim (acredito q para todos nós).

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  2. Akil Ubirajara, seu texto me emocionou, especialmente por não ter conhecido meus avôs. Noticiar a morte de alguém é difícil, e mais difícil que isso, é noticiar a morte de alguém querido. Sinto sua dor! Pude me colocar nas cenas narradas, ainda que não estivesse lá e o choro veio automaticamente. Parabéns pelo texto denso e sensível.

    Com carinho,
    Lilith

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Muito obrigado, Lilith! É muito bom saber q minhas palavras são capazes de despertar esse tipo de emoção em quem as lê.

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  3. Akil, como alguém que pode desfrutar essa parceria que é ter um irmão, sei como é difícil passar por esse momento. Eu mesmo passei por eles duas vezes em menos de 2 meses. Perdi dois avôs, um após o outro. Nossos pais ficaram ocupados resolvendo as questões burocráticas da morte, além de consolarem uns aos outros e ao resto da família. Só restamos eu e minha irmã. Naquele momento, nós bastamos um pro outro e, mesmo sem palavras, ter ela comigo trouxe um alívio. Meus pêsames pela sua perda.
    Seu texto é um dos poucos com um diálogo e uma representação real da cena, o que apenas nos dá mais liberdade pra nos colocarmos em seu lugar, o que, em seu caso, me ajudou a me transportar pra dentro da sua história, e compartilhar da sua dor. Não é sádico como podemos fazer coisas tão bonitas e bem construídas através de algo tão triste como a Morte?
    Com afeto, Argus.

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    1. Obrigado pelo comentário, Argus! É bom saber q consegui proporcionar uma experiência dessas usando apenas palavras. É realmente espantosa e maravilhosa a capacidade de transformar dor em arte, mas acredito q é assim q sobrevivemos. Meus pêsames tb pelas suas perdas. Mais uma vez, muito obrigado!

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  4. Akil, sinto muito pelo falecimento de uma pessoa tão querida e sinto mais ainda que tenha que ter tido a responsabilidade de transmitir essa notícia. Seu texto ficou muito bem escrito.
    Com carinho, Aria.

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  5. Akil, muito obrigado por ter compartilhado o seu trauma. Eu me emocionei lendo os diálogos que você tão bem estruturou. Consegui sentir o quanto você teve que ter força para dar a notícia à sua irmã e não pude conter as lágrimas. Porque contar algo triste também requer coragem. A sua coragem e força são o que de mais belo consigui perceber nesse texto.

    Abraços

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  6. Akil, meus sinceros sentimentos pela sua perda. Me emocionei ao ler o seu texto, tão bem construído, as cenas fortes e tão sensíveis ao mesmo tempo. Você conseguiu fazer com que o leitor se conectasse com você, senti a sua dor ao ler. Parabéns pelo texto!

    Com carinho, Elizabeth.

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  7. Akil, seu texto conseguiu me prender do início ao fim sem uma piscada de olho. A ambientação e os detalhes da situação vivida torna o texto muito mais emocionante e pesado de se ler. Você conseguiu me deixar arrepiado lendo um texto, o que raramente acontece comigo. O ritmo que você conseguiu colocar nessa produção criou um ar de suspense e curiosidade em mim que você não tem noção. Lendo o texto, só queria saber o que você iria escrever nas próximas frases. Estou ansioso para suas próximas produções, parabéns pelo texto e pela coragem de expor uma situação tão íntima.

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  8. Querido Akil, sinto muito pela dor da perda. Infelizmente, também sei a dor que é perder alguém que amamos e ainda ter que dar essa notícia. E quanto a sua produção textual, ela é simplesmente cativante. Me prendeu do início ao fim.

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