O parto
Conceber uma crônica não é tarefa fácil. Machado de Assis dizia que nem todos os dias são tecidos de ouro para o folhetinista, e o pior deles, sem dúvida, é o dia de escrever.
Vocês que me pedem histórias mais pessoais, mais detalhadas, tentem entender: não é fácil ter o mundo inteiro nas mãos e ainda assim escolher falar de si. Faço o que posso, seguindo a orientação do próprio Machado: “o folhetinista é a fusão admirável do útil com o fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo”.
Dentre tantas crônicas que encontrei, a que despertou as maiores inquietações foi publicada na coluna A Semana, em 17 de julho de 1892. O país sofria os efeitos devastadores da crise do encilhamento, e apesar dos 130 anos que nos separam da tal semana vivida por Machado, vê-se logo que o Brasil sempre foi Brasil, com suas ironias e contradições:
“Farto de vendavais, naufrágios, boatos, mentiras, polêmicas, farto de ver como se descompõem os homens, acionistas e diretores, importadores e industriais, farto de mim, de ti, de todos, de um tumulto sem vida.”
Um tumulto sem vida. Reconheci em suas palavras um aborrecimento muito comum nos dias de hoje, um tédio que parte da impotência frente a um país cada dia mais empobrecido, devastado, arruinado.
Apesar de tudo, tento conservar a esperança. A maior beleza da vida está na potência, na capacidade de fazer escolhas, de criar nosso próprio destino, como fez a tal viúva que, cansada do enjoo do mar, entregou-se novamente à tempestade e anunciou seu amor no jornal.
Olho, portanto, para esse texto, agora quase concluído, e me sinto viva, atuante, mãe. Entorpecida de amor e de estranhamento ao ver meu recém-nascido pela primeira vez, o rostinho disforme e ensebado, as pequeninas cordas vocais fazendo ecoar o primeiro de muitos choros que virão. Como todas as mães, penso secretamente:
— É meio feio, tem carinha de joelho, mas é meu filho.
Por Karmen Chameleon
Karmen, seu texto deve ser um dos meus favoritos dessa semana. Fica registrado aqui o enorme sorriso bobo que dei ao ler a última frase. Adorei a construção do começo ao fim, incrível!
ResponderExcluirCom afeto, Argus!
Escrever é, de fato, parir. Você alimenta aquele ser por um tempo, sente carinho, afeto, acha meio chato e se arrepende de ter tido aquela ideia, mas quando ele nasce... A paixão é certa. A última frase, combinada com o contexto, deve ser, provavelmente, um dos meus momentos favoritos das crônicas aqui postadas; a imprevisibilidade junta ao fato de ser uma frase tão comum deixa esse quentinho no nosso peito. E é por isso que escrevemos, certo? Obrigada por isso, Karmen!
ResponderExcluirCom carinho,
Inez
Karmen, que lindo recém-nascido você gerou! Eu amei mesmo a sua crônica, parecia que eu estava comendo pipoca. E eu digo isso com a melhor das intenções, porque quando eu paro para comer pipoca, meu dia melhora quase instantaneamente.
ResponderExcluirTá tudo tão bem entrelaçado que eu fico até com medo de comentar. O que eu posso dizer? A metáfora que você criou se encaixou perfeitamente e dialogou com tudo o que você já tinha contado. Escrever sobre o ato de escrever é poético demais para mim. Estamos o tempo todo nessa relação parental com nossas criações. Fico pensando aqui em como eles nos geram um sentimento estranho, crescente, familiar. Essa coisa de sentir as dores da gestação e do parto, e olhar para a carinha do nosso texto e saber que é nosso. Não tem palavra que consiga descrever.