sexta-feira, 29 de abril de 2022

 VOCÊ É PRECAVIDO?


Imagine que  você, meu caro leitor, está andando pela rua da Alfândega, distraidamente, sonhando acordado, porque uns belos olhos o aguardam na outra esquina. E ,sem mais nem menos, os transeuntes são assim mesmo, passa por você um homenzinho robusto, cara larga, metido em um paletó meia boca. Bem, você pensa, “que mal há se eu cumprimentar esse homem e dar bons dias?” Está tão feliz que se deixa relaxar os modos. E eis que você abre a guarda, o corpo se vira para ele e o celular que estava na mão direita é jogado à vista do outro. Sem querer, você tenta cumprimentá-lo com esta mesma mão, em uma espécie de movimento involuntário, coisas da mente. Sordidamente, o homem sorri, faz um gesto comedido e com os lábios em curva, balbucia poucas palavras. Uma delas é “obrigado”. Em seguida, já de cara lavada, mete a mão no seu celular e sai correndo rua afora. Você, seu palermo, fica sem o celular ou corre atrás do gatuno?


Alto lá, não adianta me apedrejar palavras belas. Eu coloquei você nessa? Saia sozinho. Melhor dizendo, invoque nosso sublime Machado de Assis para resolver essa pugna na qual você foi colocado. Então, pare de reclamar, e preste atenção às próximas palavras, caso queira sair dessa a tempo de encontrar os belos olhos que o esperam na esquina.


Pois bem. Na obra Bons dias!,é possível encontrar a crônica do dia 27 de dezembro, na qual Machado de Assis escreve, sob o pseudônimo de Boas Noites, sobre uma novidade que muito pode ajudar aquele que é prudente. Olha aqui a chave para resolver o caso do celular roubado. Machado, ou melhor, Boas Noites acreditava ser o mais precavido dos seus contemporâneos, com oração na ponta da língua e resignação de não contrariar opinião alguma , mesmo que na época dele tivesse lá seus bolsominions enérgicos. Até que, ao sair de uma conferência republicana, ele e os amigos foram atacados por alguns indivíduos. E eu lhe pergunto, quem os salvou? A mais bela tecnologia que se poderia inventar na época, o apito! Os atacados recorreram ao apito para propagar aos sete ventos que ali necessitavam de policiais. Foram acudidos a tempo e o narrador saiu ileso para contar a história. 


Crônica melhor não pode ter para lhe salvar da situação em que eu lhe deixei, não é mesmo? Agora, depois de saber o que sucedeu na crônica machadiana tão deliciosa de ser lida,você já sabe como recuperar o celular. Tire o apito do bolso e faça com que os policiais mais próximos escutem o seu lamento desesperado. Se aconteceu lá no século XIX, vai acontecer cá também. E corra que o seu flerte o aguarda.


Eu já meti o meu aqui dentro do bolso da calça , já não saio sem ele. Se você me vir na rua e quiser me atacar, saiba que ando armado. Alto lá!

Por Liev Vitorino

3 comentários:

  1. Querido Liev, sua crônica me gerou uma sensação de leveza e felicidade tão súbitas quanto o espanto com um apito alheio. Seu humor disfarçado e ao mesmo tempo escancarado, relatando um causo que para Machado também deveria ser motivo de risadas, demonstra uma sensibilidade muito legal na leitura da crônica de nosso querido Assis. A partir de hoje andarei sempre com um apito no bolso acompanhado da minha sempre fiel toalha, porque o guia do mochileiro das galáxias adverte: "a toalha é um dos objetos mais úteis para um mochileiro interestelar (e com certeza à todos os indivíduos comuns). Em parte devido à seu valor prático: você pode usar a toalha como agasalho [...]; pode umedecê-la e utilizá-la em um combate corpo a corpo (situação que seria útil no causo descrito por você, caro Liev)[...]; você pode agitar a toalha em situações de emergência para pedir socorro; e naturalmente, pode usá-la para enxugar-se com ela se ainda estiver razoavelmente limpa."
    Com esta pequena passagem do guia me despeço, um abraço e obrigado pela dica do apito!

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  2. Caro Liev, adorei sua estratégia pra nos levar à imersão da história apresentada na crônica, nos fazendo enxergar pelos olhos do personagem. Ótimo texto!
    Com afeto, Argus.

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  3. Os melhores textos são aqueles que, parágrafo a parágrafo, crescem seu sorriso e deixam as bochechas doendo. Ao relacionar uma situação comum no nosso Rio de Janeiro com essa crônica machadiana, você fez exatamente isso, e não poderia ter ficado melhor. Vale a pena perder o celular pelo flerte? Quem sabe o uso do apito atrairá ainda mais o seu objeto de desejo? Essas perguntas você não respondeu, mas já me deu um conselho.

    Com carinho,
    Inez

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