A SANGUE FRIO
O título pode lembrar um livro, um autor, um fato. É essa a intenção que tenho. Pois sempre
passo alguns dias voltando a um ano específico da minha vida que me mudou
intensamente. E nenhuma outra combinação de palavras expressaria melhor minha
condição de narrador de um acontecimento traumático. Mas só tenho a palavra escrita para
me proporcionar a catarse e me libertar das construções mentais que uso para me manter
distante de tudo e todos. Espero ir ao inferno e retornar mais leve, ou quem sabe menos
caótico. Quem vem comigo?
E eis que me deparo com uma miríade de linhas indecifráveis, por onde poderia começar a
vociferar meu completo silêncio. Hoje, pensei várias e várias vezes em como repartir um
pouco disto que cá em mim não quer sair, que transpassa a linha do dizível e me cala a
boca. Mas não a minha caneta, não a mão que se move incessantemente em movimentos
violentos no papel, exercendo a vida própria que tem, na intenção de gritar em letras e
palavras o que de bárbaro vivi.
Viajo ao passado para trazer lapsos de um sobrevivente, que pode não ser tão confiável e
completamente verídico, já que minhas memórias estavam comprometidas pelo trauma.
Então,quando me reconheço no tempo e espaço distante, vejo pedaços do meu corpo
sendo devorados por uma cidade em fúria e fome de escárnio. Naquele local, fui
abocanhado no peito por selvagens.
E por quê?
Aqui eu escrevo o que poderia ter sido a manchete do meu jornal :”Três pessoas foram
assassinadas a sangue frio em um domingo à noite como se não tivessem nenhum valor.
Uma família inteira foi morta não só pelas armas de um assassino, mas também pelas
câmeras que filmaram seu desespero e pelas palavras inquisidoras de sua vida,
propagadas pelo séquito de uma imprensa marrom”. Mas isso é grande demais e não
vende. E eu não preciso escrever aqui o que comentaram sobre os meus familiares quando
olharam as suas fotos e descobriram que um deles era negro.
Esse texto deveria ser sobre eles. Eu me sinto egoísta de falar sobre a minha dor, quando
parece que ela é tão insignificante perto do que eles passaram. Só que eu preciso dizer.
Preciso. Pois não tive direito à assimilação da morte, à análise do crime, ao luto comedido e
nem ao choro desesperado. Eu e minha família fomos expostos por telejornais e jornais de
uma maneira tão grotesca que me fez questionar a existência da humanidade.
Ninguém enxergou a morte abrupta de três pessoas, só o espetáculo. Porque vida e morte
tem que ser apresentadas à multidão nesta contemporaneidade.
Fui invadido por olhares maldosos em meu momento mais crítico. E , às vezes, eu me pego
pensando se estou exposto, à mostra, na vitrine. Se os olhares que me miram são
inquisidores ou apenas curiosos. Parece que perdi o tato. Parece que perdi parte de mim.
Por Liev Vitorino.
Querido Liev,
ResponderExcluirFalar sobre um trauma que te afeta tanto, mesmo que não seja diretamente pertencente à você, é falar sobre seus anseios também!
Lamento que tantas dores tenham sido caladas e vistas como espetáculo, a falta de empatia é uma das maiores doenças do século!
Estímulo que procure auxílio médico, traumas profundos precisam de certo suporte para serem curados!
Temo infelizmente que diante a tantas palavras e poesias dolorosas, tenha me perdido na narrativa e as ideais não tenham ficado claras!
Agradeço por compartilhar seus traumas conosco!
Com carinho,
Shaolin, o matador de porco
Vitorino, parabéns pela expressividade do seu texto. As palavras q vc usou deixaram evidente a sua urgência em escrever e me provocaram também uma urgência em ler até o fim. Gostei muito da sua escrita e espero que o texto represente mais um passo para se libertar desse trauma.
ResponderExcluirLiev, seu texto me tocou profundamente. Para ser sincero, creio que todos perdemos algumas partes pelo caminho, o que precisamos fazer é abraçar o que nos resta e transformar em algo bonito -- como você fez no seu texto. Suas palavras foram profundas e desesperadas, eu consegui sentir a dor no seu peito ao falar sobre isso. Fique bem.
ResponderExcluirLiev, que força a sua em se abrir para nós sobre uma memória que te traz uma série de traumas e escancara como a sociedade pode ser cruel. É doloroso assimilar a perda de um ente querido, ainda mais quando a exposição dela não permite nos sentir o luto. Espero que colocar essa dor para fora tenha te ajudado, ao menos um pouco, a lutar contra o caos causado pela perda. Saiba que estou aqui, para o que você precisar.
ResponderExcluirCom carinho,
Bluebird.
Liev, suas palavras foram extremamente profundas e desesperadas, espero que colocar elas para fora alivie sua dor. Sinto muito por seus traumas.
ResponderExcluirCom carinho, Aria
Querido Liev, palavras não serão suficientes para expressar o quanto eu sinto pelo seu trauma. Seu texto é profundo, sensível e de uma riqueza vocabular maravilhosa. Espero que a escrita seja um acalento para a sua dor. Estaremos sempre aqui para ouvi-lo.
ResponderExcluirCom carinho, Elizabeth.
Liev, apesar do anonimato, posso sentir a força irrefreável que emana das suas palavras. Espero que as delícias e as dores da escrita (esse ato de “ir ao inferno e retornar”, como você bem descreve) possam te ajudar a encontrar algum conforto diante da perda que sofreu.
ResponderExcluirLiev, que texto profundo, me senti lendo uma produção de um profissional da escrita, parabéns. Sua escolha lexical, as metáforas e a própria estrutura adotada torna o texto uma leitura aprazível e prática, me deixando ansioso para o que mais você tem pra dizer. As descrições deixaram ainda mais fácil o leitor se identificar com seu texto, parabéns.
ResponderExcluirLiev, eu sinto muito, muito, muito. Seu texto é impecável tecnicamente e, ainda que não fosse, seria um desserviço focar em regras gramaticais e paragrafação quando se narra uma história como essa. Seus convites ao leitor se juntar a você foram exímios e mesmo alguém que nunca tenha enfrentado o luto consegue se identificar e relacionar com o seu texto tamanha habilidade com a escrita. Espero de coração que você esteja em paz.
ResponderExcluirQuerido Liev, sinto muito pelos acontecimentos. Infelizmente a brutalidade se tronou espetáculo e barbárie algo ordinário. Na vida passamos por constantes idas e vindas ao inferno, talvez porque ele esteja tão mais próximo do que as religiões nos contam. Ademais, não há como não notar a profundidade de seu texto e sua capacidade de nos levar consigo na dor e no trauma; digo isso pois fiquei extremamente comovido. Espero que com o tempo as feridas cicatrizem e você permaneça forte.
ResponderExcluirCom carinho, Ford.
Querido Liev, sei que o luto é algo indescritível, e o fato da exposição torna tudo mais complicado... Sei que só palavras não são necessárias para expressarmos tudo que sentimos. Mas sinta-se abraçado por mim. Fique bem. Com carinho, Glória Maria
ResponderExcluirLiev, meu querido, que palavras duras, fortes, eu pude sentir a agonia que se passava por seu coração ao escreve-las, espero que fique tudo bem. Beijos, Manu.
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