segunda-feira, 11 de abril de 2022

                                           OS MONSTROS DEBAIXO DA MINHA CAMA



Ouço o som das vozes das crianças no colégio ao lado da minha casa.


Lembro, através das risadas, dos bons momentos que vivi na escola e de todas as amizades que passaram pela minha vida. Mas há um porém, lembro junto de tais boas memórias, dos monstros que nunca saíram debaixo da minha cama.

Tais monstros não tem mais nome para mim. Só de pronunciar suas letras, começo a sentir minha garganta fechar e meus olhos lacrimejando. Talvez um dia passe tanto tempo a ponto de eu esquecer o que aconteceu, esquecer os abusos psicológicos e físicos que surgiram através deles em minha infância, mas, por enquanto, os traumas sugam lentamente a minha alma, ano após ano, toda vez que eu lembro desses acontecimentos.

Eu ainda me lembro de tudo: As humilhações diárias, os gritos violentos, os socos e a desesperança em saber que eu nunca me livraria daquilo. Às vezes me pergunto o que levaria esses monstros a fazer tais atos, inclusive, o que levaria um homem adulto a fazer isso com uma criança, que apenas vivia a beleza de estar apaixonado pela música.

Mas por anos, qualquer música se tornou inaudível, passei um grande tempo com medo  de qualquer contato com ela, e só de ouvir uma sinfonia, meu corpo se amargava e tremia de ansiedade. Hoje, recuperei minha paixão pela música, mas ainda sinto que não sou bom o suficiente para lidar com ela, herança de tempos sombrios da minha vida, em que os monstros ainda se escondiam debaixo da minha cama

Assim, sinto que confessar tudo o que sofri para mim mesmo em um texto, não me colocando na situação de culpado (como eu geralmente me proponho a fazer), me faz sentir uma espécie de sublimação,  como o professor disse que aconteceria, em aula. Sinto uma ponta de liberdade vindo do meu coração, ao ponto que libero  os traumas anonimamente para todos os meus colegas de curso.

Desse modo, agora, com uma xícara de café em minhas mãos (como se fosse um adulto maduro que toma café olhando a cidade através da janela) ouço o sinal da escola tocar, e assisto todas as crianças voltando lentamente para suas salas de aula, ao tempo que as vozes e as conversas vão se extinguindo lentamente, assim como água descendo pelo ralo do banheiro. Enfim, me despeço delas, pelo menos por hoje, bem como gostaria de me despedir dos meus traumas, e rezo, mesmo não sendo religioso, para que elas não passem pelo o que eu passei, que não tenham monstros debaixo de suas camas. 
Por Ânima Bardot

9 comentários:

  1. Querido Ânima,
    Permita que a música seja a chave para sua gaiola, como uma forma de sublimação.
    Seja sua própria fortaleza contra os ataques inimigos, não hesite ser resistência!
    Também não deixe de pedir ajuda, caso necessário! E o mais importante: saiba que não se está só!
    Agradeço pela oportunidade de compartilhar seus traumas conosco!
    Com carinho,
    Shaolin, o matador de porco

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  2. Bardot, já parou pra pensar porque os monstros precisam se esconder debaixo das nossas camas? A verdade é que a aparência deles não é nem um pouco assustadora, e se os víssemos debaixo da luz, com clareza, não teríamos um pingo de medo deles. Os monstros têm mais medo de que os enxerguemos como realmente são do que nós temos deles, e, ao meu ver, eles nos assustam pra nos impedir de acender a luz. Bardot, corra até seu interruptor! Não seja negligente com o dom que há em ti, mas aproveita-o não só como uma forma de sublimação, mas como um instrumento pra iluminar quem sofre com esses monstros. Uma oração é muita boa, mas às vezes a ação é mais eficaz.
    Com afeto, Argus.

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  3. Ânima, parabéns pelo seu texto! No início, consegui sentir sua desolação e desesperança, mas no fim, me senti como se também tivesse tomado uma xícara de café: mais quente e com energia para recomeçar. Espero q sua escrita bonita seja não apenas um recurso para esquentar o coração do leitor, mas sim um sinal de q vc está pronta para seguir em frente. Gostei de ler seu texto.

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  4. Bardot, seu texto é lindo. Gostei da forma como escreveu e relacionou suas ideias, ficou tudo muito claro e profundo. Me sinto exatamente dessa forma algumas vezes e também rezo, mesmo não acreditando em nada. Faz bem fingir que existe algo além.

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  5. Ânima, sinto muito que lide com traumas tão intensos gerados por tamanha crueldade. Espero que tenha se fortalecido e que consiga voltar a apreciar a música. Gostei do texto e de sua escrita.
    Com carinho, Aria

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  6. Ânima, agradeço por compartilhar o seu trauma conosco. A fluidez do seu texto o fizeram belíssimoo. Sem contar nas métaforas muito bem elaboradas que estão presentes nele. É interessante a viagem que você consegue nos propor, porque, inevitavelmente, todos nós temos monstros debaixo da cama. Pelo menos comigo funcionou, eu olhei debaixo da minha e vi que havia mais coisas do que eu gostaria de lembrar. Muito obrgado pela imersão em sua dor. Espero que você consiga se sentir cada vez melhor.

    Abraços

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  7. Ânima, lamento muito pelos abusos sofridos na sua infância. Deve ter sido difícil crescer em um ambiente tão hostil. Gostei muito do seu texto, a construção escola-infância foi tão certeira que eu viajei no tempo! Espero que você se fortaleça cada vez mais e que a música possa ser acalento para os dias de dor.

    Com carinho, Elizabeth.

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  8. Ânima, sua construção do texto me fez lê-lo de uma forma muito fluida e prazerosa, adorei o jeito com que você desenvolveu sua produção, sempre se utilizando de muitos detalhes, deixando o leitor mais próximo de seu texto. Ficou ainda mais fácil me identificar com sua produção pois também tenho essa relação com a música, obrigado pelo texto.

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  9. Querido Ânima, amei esse texto, e como você conseguiu me fazer imergir no seu universo foi simplesmente incrível! Sua escrita é envolvente e contínua!

    Abraços, Glória Maria!

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