Existem
alguns jovens sortudos. Existem outros tantos azarentos. Existem, então, os
demais apenas medianos ou conformados. Cléblão se achava assim. Sentia que seus
medos, anseios e traumas não eram grandes o suficiente para se comparar com
vidas muito promissoras ou desgraçadas. Ele pensava que tudo que recebemos de
estímulo é bem tendencioso a nos fazer querer coisas grandes e não gostava
muito dessa ideia. Seu grande-pequeno sonho era apresentar uma partida de
futebol na tevê local (era uma afiliada da Sportv) ou comentar uma esquete de
futebol no Youtube qualquer – isso está em alta, né. Ele literalmente sonhava
sobre. E se propusera a tal, então. Filho de pai enfermeiro e mãe professora,
ele tinha uma vida vivível, digamos assim. Passara para uma faculdade federal
do outro lado da poça e agarrara, com todas as sabidas forças pessoais até o
momento, a oportunidade. A gente está sempre descobrindo novas capacidades e
habilidades, descobriria o menino no futuro.
Menino,
não. Cléber. Clebão. Clebão!? Isso é apelido ou xingamento? Parece o tio que
vai perguntar se é “pá vê ou pá cumê”. Pelo amor de Jeová! Clebão, não!
Machado. Machadoo... Uhmm.. Machadão. Pô, Machadão, então!? Podemos rebatizar
ele? Machadão passa a ideia de virilidade que uma audiência média da tevê
brasileira adoraria receber, então, confia, Machadão, no futuro pode fazer
sentido. Embora, eventualmente e provavelmente, o Clébão vá ter que demonstrar
que evoluiu para Machadão diante do grande público, talvez dando algumas
cacetadas em púlpitos para demonstrar masculinidade. Provável que Machadão
consiga ter mais força com a mão direita na hora de transferir o golpe.
Era um
menino ainda. Andava de transporte público, coitado, e eventualmente via
pessoas vendendo coisas, embora, normalmente, não se compadecesse tão
facilmente. A vida lhe ensinaria mais adiante além do que já havia ensinado até
em tão.
Gostava
de Seu Jorge. Acredite. Gostava. Jorge vem de lá da Capadócia. Sim, ele vem.
Mas Cléber não. Ele não andava vestido e armado com as armas de São Jorge para
que os inimigos dele, tendo pés não lhe alcançassem, tendo mãos não lhe
pegassem, tendo olhos não lhe vissem, e nem em pensamentos eles pudessem lhe
fazer mal.
Então,
assim, por ignorância de não saber o que verdadeiramente significava “Felicidade”,
de Seu Jorge, ainda que provavelmente Cléber fosse feliz em sua maneira,
faltava-lhe.
Até
porque o jovem-rapaz-homem-em-construção, definição que você, caro leitor,
pode alterar, caso deseja que seja, perdera a mãe muito jovem, ainda criança,
então naturalmente se via exposto a perguntas existenciais mais frequentemente
e daí entendemos uma necessidade de normalidade na vida.
Sempre se
questionava:
- Será
que somos somente aquele ciclo da vida que aprendemos em ciências no ensino
fundamental? Nascemos, crescemos, reproduzimos e morremos?
O jovem
se culpava de muitas coisas, enquanto lidava com as perdas que a vida lhe
proporcionara. O que almejava não era uma vida de luxo, ou era, mas era o que
ele queria naquele momento. E ninguém tem o poder de julgar o que outrem quer
em momento nenhum. Nem o próprio personagem principal dessa crônica.
Ele
estava a caminho da faculdade quando parou na banca de jornal, que não vende
mais tanto jornal, comprou um cigarro, tolo, e uma raspadinha: o prêmio era uma
viagem paga pelas cidades do estado do Rio de Janeiro, algo que esse menino,
esse homem, que no futuro viria a ser o Machadão tinha como desejo reprimido a
vontade de fazer exatamente esse rolê. Pelo amor de Santo Cristo, sem
julgamento. Apenas risadinhas.
Aqui
começa a graça da vida do homem.
Ele pagou
por aproximação no celular, como se o fabricante ou a operadora de celular
propriamente que estivesse pagando a conta, com todo aquele sorriso de canto de
boca, como quem diz:
- Tenho
cartão, tenho celular, tenho tecnologia, tenho capital, rá-rá-rá.
Assim,
mesmo, como se pronuncia: Rá-rá-rá.
Enquanto
fumava o abominável Marlboro de melancia (essa porcaria nunca deveria ter sido
liberada para consumo, droga do diabo), ele raspou a raspadinha. Cacofonia. Ele
raspou. Pow-pow. Três tiros pro alto. Com a pedra do isqueiro ainda.
E...
Ele... Ganhou! A... Viagem... Pelo... Rio... De... Janeirooo!!!
Quem
diabos coloca como prêmio uma viagem pelo estado do Rio de Janeiro numa
loteria? E quem compra? E quem ganha? Machadão, irmãos! Machadão!
Enfim,
muito enfim, quando entrou em contato para receber o prêmio, ele questionou
sobre qual era a quantidade de cidades que ele poderia visitar, já que no
bilhete da raspadinha, não estava descrito, dizia apenas sobre o estado em si. Responderam...
depois de meia hora ouvindo musiquinhas no melhor estilo lounge-chic-brega, que
ele poderia visitar até três cidades, mas conversando com seu amigo advogado
(absolutamente necessário sempre na vida ter algum amigo próximo advogado, isso
é estratégia de existência, acreditem!), entendeu que ele poderia viajar por
quantas cidades quisesse já que o ônus presumido é sempre de quem oferta a
jogatina federal. Assim, Clébão, fez questão de realizar seu grande sonho,
exigindo e viajando por todas as cidades do estado do Rio de Janeiro.
Ele foi
de Petrópolis a Saquarema, de Madureira a Paraty. Noventa e dois municípios.
Foi em todos. Cada um deles com suas características exclusivas. Conhecer
estádios históricos como, por exemplo, Moça Bonita (Estádio do Bangu), foi a
melhor coisa que poderia acontecer na vida do Machado. Abstrai que ele gostava
de ser chamado por Machado porque parecia um nome de guerra e ele era fã do
Capitão Nascimento. Ninguém é perfeito, né, Clébão.
Como tudo
que é bom na vida, como a própria vida, uma hora, tem que acabar, a
inesquecível tour chegou ao fim. Então, ao final de toda essa viagem pelo
planeta Rio de Janeiro, Machadão, agora, sim, possuidor de muitos saberes,
voltava para casa com toda a bagagem cultural imensa que o RJ proporciona.
Chegou em casa cansado da viagem de ônibus. Ficou dois dias quase inteiramente
deitado, para depois resolver correr no hospital e verificar se estava tudo
bem. O médico da emergência do posto onde o pai trabalhava pediu mais exames
porque as queixas não batiam. Não fazia muito sentido as reclamações dele, com
o que o clínico-geral silenciosamente raciocinava.
Não fazia
mesmo.
Para uma
pessoa sadia.
Era um
câncer.
Não
naturalizemos essa doença. Mas entendamos que ela pode aparecer.
Inesperadamente.
Literalmente a qualquer momento.
Apareceu
para o Machadão, de vinte e um anos. Que disse que era forte, que aguentaria,
que faria todo o processo de quimio necessário, mas que também se questionava
sobre como um sistema de saúde que se propõe a oferecer o básico para a
população, para ele próprio tinha ficado tão distante desta proposta.
Ele
continuou indo para a faculdade. Começou o tratamento da quimio e outros
paliativos. A vida do rapaz foi do céu ao inferno e não há exagero nessa fala.
Mas ele tinha sorte. Por toda rede de apoio que tinha, foi cercado na mesma
instância e extravagância. Por ter contatos conseguiu acesso a muita coisa.
Recebeu todo apoio da família e amigos em tudo que fazia.
Entre
sessões intravenosas e intermusculares, Cléber conheceu uma colega de quarto.
Que esquecera de perguntar o nome, mas que já estava lá há um tempão. Ficaram
dois dias juntos durante uns picos de náuseas que ambos tiveram em tempo quase
magicamente similar.
Riram
muito das bobeiras da vida. Se conectaram. Apesar da diferença de idade. Antes
que pudessem trocar telefone, a senhora da maca ao lado, teve uma parada
cardíaca durante a madrugada. Precisou ser levada para o CTI, porém Cléber logo
foi liberado. Continuou um tratamento alternativo e as coisas foram avançando.
Alguns
meses se passaram. O câncer dele regrediu, finalmente. O pai cuidou cem por
cento do tempo, abandonando até o emprego. Eles tinham uma reserva guardada
para o carro novo que comprariam no final do ano, acabaram gastando, mas pelo
menos, o mal havia se afastado. Até quando, nem quem nunca teve câncer saberá.
Entre
aulas no Casarão Velho e no Novo IACS, ele esbarrou bruscamente numa senhora ao
atravessar a rua e logo pediu perdão.
Ele teve
um estalo, um parar, um congelamento, uma respiração lenta e profunda. Quantas
vezes você vê a sua vida na sua frente? Só que em outra pessoa? Quantas vezes
você não vê?
Não era
qualquer senhora. Era a sua colega de maca ao lado, que estava andando aos
prantos pelos corredores da faculdade do rapaz.
- Meu
deus, como você está e o que você faz aqui?
- Meu
filho...
- Afinal,
qual seu nome?
- Caroli...
Ela não
conseguiu dizer nada. Ela só chorou.
Foram
alguns minutos até ele entender que ele havia se curado porque, apesar de não
viver uma vida de luxo, ainda assim mesmo, tinha acesso, condições, reflexões,
uma rede de contato, uma cor de pele mais clara, que havia permitido que ele
tivesse uma oportunidade de cura mais facilitada e que a sua ex-colega de cela,
cela, cela, ainda estava absolutamente perdida na vida porque não tinha a mesma
rede de apoio que o Machadão teve para então um dia, quem sabe talvez, depois
de ser tudo e mais um pouco, se tornar o próximo Cléber Machado.
- Veja
bem, não estou comparando situações até porque elas são distintas.
Quem
disse isso???
Bem-vindo
ao Rio de Janeiro do Cléber Machado, das pérolas dele, das coisas que somente
ele proporciona, do Clébão, do Machado, do Machadão, do homem em construção.
Espero te
ver na TV no futuro, okay!
Só não me
diga mentirinhas, dói demais.
Que a Mão
de Fátima abençoe sua caminhada. Esse símbolo é conhecido por auxiliar as
pessoas, guiá-las e até ensiná-las sobre as situações vividas. É também um
objeto ligado à sorte.
Importa
você saber que você, Machadão, é um sujeito de sorte.
-A Fênix