“Tia, posso usar seus lápis de cor?”
Gabriel, meu aluno de 6 anos, me resgata da teia dos meus próprios pensamentos.
“Pode, só não esquece de devolver depois.”
Entrego-lhe a lata com os lápis de cor e ajeito a mesa à minha frente. Percebo, só agora, uma
pilha de desenhos finalizados deixados pelas crianças à minha esquerda. Folheio-os,
calmamente. Três jogadores de futebol, quatro famílias, duas bailarinas e uma sala de aula. O
último me faz sorrir. Pedi às crianças que desenhassem o futuro, seja lá como ele seja. Levanto o
olhar e noto mais um desenho à minha esquerda, embora ninguém tenha vindo entregá-lo. A
folha A4 branca está praticamente vazia, a não ser por uma pequena figura no centro. Uma
mulher, com um lenço na cabeça e uma expressão cansada. Sinto a sala girar ao meu redor.
Tonta, levanto-me, subitamente, e vou cambaleando até o banheiro. “Já volto!”, grito para a
estagiária. Apoiada na pia, me encaro no espelho. Meus cabelos loiros, desbotados pelo tempo,
estendem-se até minha cintura. Sinto um aperto horrível no peito. Por quê? Abaixo-me e lavo o
rosto. Outra mulher me encara através do espelho. O lenço estampado estende-se até sua cintura
e o rosto cansado parece tão familiar quanto o meu próprio. “Quem é você?”, pergunto. A boca
da mulher se move em sincronia com minhas palavras.
Buzinas me arrancam do meu sonho em um salto. Meu coração corre dentro de mim, minha
cabeça pulsa e meu corpo está encharcado de suor. Nada disso é novidade pra mim. Vou até o
banheiro. Lenço, rosto cansado. Meu cérebro tem a mania tola de voltar ao passado quando o
presente é doloroso demais. Eu não o culpo. Quem sabe se ele não sonhasse tanto com o
passado, conseguiria lidar melhor com o presente. Mas a dor que mora dentro de mim só pode
ser desempacotada em seu próprio tempo; não é coisa que se obrigue. Entro no chuveiro e deixo
a água me levar embora. Penso em nada. Desde a doença, adquiri essa habilidade. Sempre achei
que fosse impossível, mas a verdade é que, com a dor, vem também o vazio. Procuro mantê-lo
na minha mente. O problema é quando ele ocupa meu peito, e me vem uma vontade horrível de
nunca mais levantar da cama. Saio do chuveiro e me arrumo, com calma. Daqui a pouco, vou
sair pra pedir ajuda. Pedir ajuda pra pessoas que muito provavelmente só vão me dirigir olhares
de pena e meios-sorrisos. Não as culpo, afinal, como poderia? Às vezes, porém, a injustiça disso
tudo me consome e eu só sei raiva. Enxergo raiva, como raiva, respiro raiva. Meu sangue ferve,
minha pele esquenta logo em seguida. Sinto fogo arder dentro do meu abdômen. Prefiro isso ao
vazio, porque não tem nada de que eu sinta mais falta do que me sentir viva.
Saio de casa lentamente. Olhares. Já me acostumei com eles. Caminho até meu destino,
ensaiando o que vou falar na cabeça. Tento me lembrar do sabor da esperança. Não consigo.
-boo
AMEI! Achei maravilhosa a construção do cenário e da "personagem", a profundidade do texto e a abordagem diferente que você trouxe, achei o último parágrafo um pouco longo mas nada que atrapalhasse a experiência. Maravilhoso.
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