Uma família de classe média, com uma mãe solteira,
provedora da casa com três criaturinhas superprotegidas. A mãe iniciara a vida
vendendo linguiças defumadas de porta em porta no bairro mas em dado momento
alcançou algum tipo de sucesso quando resolveu abrir uma serralheria com o pai
das crianças morto por engano da polícia que o confundira com um meliante
procuradíssimo – foram oitenta tiros por engano em um pai de família.
Era uma terça-feira normal, em um lugar normal, de uma
vida normal. Pelo menos assim se iniciou o dia.
Gabriel, o filho mais velho e mais problemático, estava
cansado depois de um dia conturbado na escola. Estudar no ensino médio no
Colégio Imaculado Coração de Maria não era tarefa fácil para um garoto gordinho
preto vindo de família periférica em escala social. A escola parecia uma selva
com animais de todos os tipos, a maioria bem ferozes. Obviamente, o jovem era
presa fácil. Sempre levava uns tapas aleatórios e escutava piadas gordofóbicas
e racistas, entre outras, envolvendo também a sua mãe, verdadeiramente
imaculada.
Uma mãe que parecia ser toda a força da natureza reunida
numa pessoa só. Em todos os sentidos possíveis. Um furacão de força e de garra.
Uma máquina! Com uma resistência às merdas que a vida nos coloca de forma
descomunal. Movida por uma força maior, que nunca ninguém soube explicar muito
bem o que era, uma fada de luz que poderia ser a mãe de qualquer um que leia
esse conto. Poderia inclusive ser a gente no futuro.
A mulher era incomparável, tinha uma esperança extrema nas
pessoas, era uma lição de vida ambulante, e possuía uma fé na humanidade que
Gabriel, Ana e Pedro – seus irmãos, nunca entenderiam. Eles achavam, pelo
menos.
Pois bem! Voltemos ao desenrolar da prosa... Lá estava
ele depois de um dia normal, chegando da escola abençoada direto para a
serralheria da família. Ele diariamente se perguntava por que dentre tantos
tipos de negócios possíveis, a família dele escolheria ter logo um ofício tão
desgastante e subvalorizado. Eram muitas perguntas sempre. A maioria delas sem
resposta. Mas a serralheria dava dinheiro, muito dinheiro. Ainda que fosse um
dinheiro escravo-capitalista: todo dia trabalha, todo dia ganha; se não
trabalhar, não ganha! Guardemos essa informação.
⁃
Chegou atrasado de novo, garoto? Você não consegue fazer nada certo?
Disse a mãe, em tom raivoso, mas apenas escondendo sua
verdadeira preocupação. Ela era o céu e o caos ao mesmo tempo, acreditem!
⁃
Eu vim assim que pude, mas estava um pouco engarrafado.
Era mentira do filho. Na verdade, os veteranos tinham
trancado ele no banheiro apenas pra “descontrair”. Ainda que a única coisa
contraída ali fosse o cérebro dos jagunços.
⁃
Você vai me falar o que houve de verdade ou eu vou ter que descobrir?
Disse ela sabendo espiritualmente a resposta. Ela era
muitas coisas, vidente inclusive.
Entre mentiras gaguejadas e incertezas mal pronunciadas,
Gabriel começou a chorar, porque ele sabia e só ele sabia, o que ele passava no
conjunto da tragicomédia que era sua vida; que não estava sendo a melhor pessoa
que ele poderia ser, mas que de fato ele era o que ele conseguia ser. E ele até
que conseguia muito bem. Sua mãe também. Seus irmãos também. Porém, algo
faltava para conectá-los. Ninguém sabia o quê, mas descobririam juntos.
Entre uma martelada e outra, entre uma solda e uma
queimadura leve, alguém entra na loja.
Emília, a mãe, solicitou que o menino atendesse a pessoa
que acabava de chegar. Assim ele o fez. E ao perguntar como poderia ajudar,
recebeu uma resposta que nunca esqueceria:
- Cala a boca, filho da puta. Não tem desenrolo. Passa
tudo que tem de valor, não olha pra minha cara, senão te mato.
Gabriel paralisou.
- Passa todo o dinheiro e não me segue senão tu morre,
playboy!
Sorrateiramente, o garoto, que não era playboy, nem era
bobo, jogou um bolo de notas de onças e garoupas dentro da lixeira do caixa,
repassou com a outra mão apenas as notas que se acham na rua ao bandido.
Acredite, o menino era capaz de coisas no melhor estilo kung-fu Panda.
O assaltante foi embora na mesma velocidade em que
chegou: como um raio.
Gabriel tinha muita raiva guardada consigo. Por tudo que
já vivera e pelo que ainda viveria. Ele não pensou. Quando viu que o assaltante
estava sozinho, pegou um tarugo de ferro e saiu correndo atrás do mesmo, sem
pensar nada.
- Mãe, chama a polícia que eu vou pegar ele.
A mãe não tinha nem entendido nada direito, coitada.
Ele correu, o menino correu muito. A mãe, absolutamente
de forma orgânica, danou-se a correr atrás dele também. Assim foram: assaltante
correndo com dinheiro da serralheira da família, jovem Gabriel correndo atrás
do assaltante, dona Emília correndo atrás do jovem Gabriel. Algo aconteceu. A
mãe não alcançou o filho. Ela perdeu as forças no meio do caminho. Desmaiou de
tanto nervosismo.
Se antes, o menino com nome de arcanjo, corria atrás do
bandido, ao ver a mãe estirada no chão, ele estatelou. O assaltante que se
danasse.
Ainda que tivessem muitas discussões, a relação entre os
dois era mais poderosa que qualquer coisa. Em vez de ligar para a polícia,
ligaram para a emergência.
Daí, daquele dia normal que de normal não fora nada, a
frequência com que viam pessoas vestidas de branco e verde passaria a aumentar.
O episódio foi o início de uma jornada, que ninguém
espera nunca. Dona Emília não tinha simplesmente perdido as forças e cansado.
Ela desmaiou por conta do avançado estágio do câncer na medula que foi
inesperadamente descoberto.
Tudo virou de cabeça para baixo.
As semanas e meses seguintes não foram fáceis. Entre
venda da casa de praia que tinham recém adquirido e o fim da serralheria (dado
que é esse é um tipo de negócio escravo-capitalista, lembra?), a vida
financeira, que há muito não era problema, começava a se desenrolar de forma
inversa.
O dinheiro do Uber, da comidinha japonesa, acabara. Daí
foi muita ladeira, e muita decida.
Se antes estavam escalando a pirâmide social, agora
estavam deslizando meio pico abaixo. Mas Emília além de muitas aptidões, sabia
fazer doces como uma deusa. E fez. enquanto aguentava. Até que não tinha mais
coordenação motora para tal.
Gabriel continuava na escola particular por conta de
doações que a família recebia dos vizinhos e familiares, mas dinheiro para
outras contas como aluguel e cesta básica começaram a ficar rarefeitos como se
o ar da realidade vivida também fosse se esvaindo.
A saída mais natural era também a mais humilhante: quem
trabalhara com fartura e fortuna durante anos, agora se via na posição daqueles
que até ajudava eventualmente. Emília, Gabriel, Ana e Pedro viraram pedintes.
Pedintes. Que palavra distante de nós. Nem tanto.
Semana passada estavam numa faculdade de Niterói, poque
referiam pedir em nesses locais. É que no início do ano, eles foram pedir ajuda
para um casal, e o homem não gostou. Achou que era mentira dos dois, deu um
tiro para o alto e um tapa na orelha de Gabriel, logo ele, que já apanhava
muito da vida.
Que loucura, meu Deus! Era uma família com problemas mas
uma família linda. Não mereciam viver isso. Todavia, estavam vivendo. Quem
decide o que se merece na vida? Quem tem coragem de decidir?
O arcanjo se culpava por não ter feito mais coisas pela
mãe antes. Ainda que não fosse humanamente possível, ele se culpava. Enquanto a
mãe se culpava de toda a situação. Emília geralmente não conseguia falar sobre
o assunto.
Se tivesse que pedir ajuda a alguém, ela chorava
copiosamente, levantando falsas análises de almas moribundas, pobres de
espírito. Ela geralmente levava uma cartinha que o filho tinha feito pra que
ela lê-se quando ele não pudesse acompanhá-la.
Quando a bomba explode, até as guerras dos mundos acabam.
Quando acontece algo ruim de verdade, pessoas que diziam ser amigas, se
camuflam na paisagem cinzenta da morte. E às vezes, nos restam apenas
desconhecidos, preferencialmente os que não duvidem da nossa honra.
O nome dessa pessoa que teve seu mundo transformado
brutalmente era Emília. O final dela ainda não está escrito. Nem nessa crônica,
nem na vida real. Não sabemos se ela vai sobreviver, ou se o câncer vai se
fazer um urubu esperando pela carniça.
O nome dela poderia ser Carolina, Maria, Marli, Lúcia,
Fátima, mas é você, leitor quem vai dizer!
O nome dessa mulher vai ser o nome da sua mãe.
No final, a mãe é minha, mas poderia ser a sua.
Então...
Volte no início deste desenrolo e escreva o nome da sua
mãe lá em cima. No título. No espaço em branco. Preencha esse espaço com o nome
dela.
Se essa mãe aparecesse na sua frente numa aula de
faculdade, então você doaria? Se fosse a sua mãe, você doaria? O que você
sentiria se duvidassem da sua mãe, irmã(o)?
Existem várias formas de mudar o mundo. Mas a primeira
delas é ter vontade.
Ligue para a Carolina. Chame-a para tomar um café.
Converse com ela. Pergunte como foi o dia dela e sobre o tratamento contra o
câncer.
Salvem uma vida.
Pela Emília, pela Carolina, pelo Gabriel, por quem no
futuro ou presente está sendo golpeado com tamanha lástima. Ou simplesmente doe
dinheiro.
Acredite, é mais fácil!
Você tem coragem?
Escreva o nome da sua mãe lá em cima!
Seja corajoso.
Doe o que você puder.
Ainda que apenas afeto!
Apenas!
O pix é esse:
(21)98436-1086
Caroline Alves Serra
A Fênix
Excelente texto, apesar de não falar diretamente sobre a Carolina abordou bem as dificuldades de uma família desprivilegiada para alcançar a ascensão social, como um problema grave (nesse caso uma enfermidade) pode colocar tudo a perder e mostra como a sociedade atual está cada dia mais desumanizada.
ResponderExcluirQue texto forte. A estrutura textual, das frases, a construção dos personagens, tudo muito bem feito. Gostei que você interligou várias partes e verdadeiramente construiu uma história sobre o que foi sugerido, já que temos liberdade para isso.
ResponderExcluirAdorei que você construiu uma história sobre a proposta, muito bom texto!
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