sábado, 27 de maio de 2023

MA-CHA-DÃO

Existem alguns jovens sortudos. Existem outros tantos azarentos. Existem, então, os demais apenas medianos ou conformados. Cléblão se achava assim. Sentia que seus medos, anseios e traumas não eram grandes o suficiente para se comparar com vidas muito promissoras ou desgraçadas. Ele pensava que tudo que recebemos de estímulo é bem tendencioso a nos fazer querer coisas grandes e não gostava muito dessa ideia. Seu grande-pequeno sonho era apresentar uma partida de futebol na tevê local (era uma afiliada da Sportv) ou comentar uma esquete de futebol no Youtube qualquer – isso está em alta, né. Ele literalmente sonhava sobre. E se propusera a tal, então. Filho de pai enfermeiro e mãe professora, ele tinha uma vida vivível, digamos assim. Passara para uma faculdade federal do outro lado da poça e agarrara, com todas as sabidas forças pessoais até o momento, a oportunidade. A gente está sempre descobrindo novas capacidades e habilidades, descobriria o menino no futuro.

Menino, não. Cléber. Clebão. Clebão!? Isso é apelido ou xingamento? Parece o tio que vai perguntar se é “pá vê ou pá cumê”. Pelo amor de Jeová! Clebão, não! Machado. Machadoo... Uhmm.. Machadão. Pô, Machadão, então!? Podemos rebatizar ele? Machadão passa a ideia de virilidade que uma audiência média da tevê brasileira adoraria receber, então, confia, Machadão, no futuro pode fazer sentido. Embora, eventualmente e provavelmente, o Clébão vá ter que demonstrar que evoluiu para Machadão diante do grande público, talvez dando algumas cacetadas em púlpitos para demonstrar masculinidade. Provável que Machadão consiga ter mais força com a mão direita na hora de transferir o golpe.

Era um menino ainda. Andava de transporte público, coitado, e eventualmente via pessoas vendendo coisas, embora, normalmente, não se compadecesse tão facilmente. A vida lhe ensinaria mais adiante além do que já havia ensinado até em tão.

Gostava de Seu Jorge. Acredite. Gostava. Jorge vem de lá da Capadócia. Sim, ele vem. Mas Cléber não. Ele não andava vestido e armado com as armas de São Jorge para que os inimigos dele, tendo pés não lhe alcançassem, tendo mãos não lhe pegassem, tendo olhos não lhe vissem, e nem em pensamentos eles pudessem lhe fazer mal.

Então, assim, por ignorância de não saber o que verdadeiramente significava “Felicidade”, de Seu Jorge, ainda que provavelmente Cléber fosse feliz em sua maneira, faltava-lhe.

Até porque o jovem-rapaz-homem-em-construção, definição que você, caro leitor, pode alterar, caso deseja que seja, perdera a mãe muito jovem, ainda criança, então naturalmente se via exposto a perguntas existenciais mais frequentemente e daí entendemos uma necessidade de normalidade na vida.

Sempre se questionava:

- Será que somos somente aquele ciclo da vida que aprendemos em ciências no ensino fundamental? Nascemos, crescemos, reproduzimos e morremos?

O jovem se culpava de muitas coisas, enquanto lidava com as perdas que a vida lhe proporcionara. O que almejava não era uma vida de luxo, ou era, mas era o que ele queria naquele momento. E ninguém tem o poder de julgar o que outrem quer em momento nenhum. Nem o próprio personagem principal dessa crônica.

Ele estava a caminho da faculdade quando parou na banca de jornal, que não vende mais tanto jornal, comprou um cigarro, tolo, e uma raspadinha: o prêmio era uma viagem paga pelas cidades do estado do Rio de Janeiro, algo que esse menino, esse homem, que no futuro viria a ser o Machadão tinha como desejo reprimido a vontade de fazer exatamente esse rolê. Pelo amor de Santo Cristo, sem julgamento. Apenas risadinhas.

Aqui começa a graça da vida do homem.

Ele pagou por aproximação no celular, como se o fabricante ou a operadora de celular propriamente que estivesse pagando a conta, com todo aquele sorriso de canto de boca, como quem diz:

- Tenho cartão, tenho celular, tenho tecnologia, tenho capital, rá-rá-rá.

Assim, mesmo, como se pronuncia: Rá-rá-rá.

Enquanto fumava o abominável Marlboro de melancia (essa porcaria nunca deveria ter sido liberada para consumo, droga do diabo), ele raspou a raspadinha. Cacofonia. Ele raspou. Pow-pow. Três tiros pro alto. Com a pedra do isqueiro ainda.

E... Ele... Ganhou! A... Viagem... Pelo... Rio... De... Janeirooo!!!

Quem diabos coloca como prêmio uma viagem pelo estado do Rio de Janeiro numa loteria? E quem compra? E quem ganha? Machadão, irmãos! Machadão!

Enfim, muito enfim, quando entrou em contato para receber o prêmio, ele questionou sobre qual era a quantidade de cidades que ele poderia visitar, já que no bilhete da raspadinha, não estava descrito, dizia apenas sobre o estado em si. Responderam... depois de meia hora ouvindo musiquinhas no melhor estilo lounge-chic-brega, que ele poderia visitar até três cidades, mas conversando com seu amigo advogado (absolutamente necessário sempre na vida ter algum amigo próximo advogado, isso é estratégia de existência, acreditem!), entendeu que ele poderia viajar por quantas cidades quisesse já que o ônus presumido é sempre de quem oferta a jogatina federal. Assim, Clébão, fez questão de realizar seu grande sonho, exigindo e viajando por todas as cidades do estado do Rio de Janeiro.

Ele foi de Petrópolis a Saquarema, de Madureira a Paraty. Noventa e dois municípios. Foi em todos. Cada um deles com suas características exclusivas. Conhecer estádios históricos como, por exemplo, Moça Bonita (Estádio do Bangu), foi a melhor coisa que poderia acontecer na vida do Machado. Abstrai que ele gostava de ser chamado por Machado porque parecia um nome de guerra e ele era fã do Capitão Nascimento. Ninguém é perfeito, né, Clébão.

Como tudo que é bom na vida, como a própria vida, uma hora, tem que acabar, a inesquecível tour chegou ao fim. Então, ao final de toda essa viagem pelo planeta Rio de Janeiro, Machadão, agora, sim, possuidor de muitos saberes, voltava para casa com toda a bagagem cultural imensa que o RJ proporciona. Chegou em casa cansado da viagem de ônibus. Ficou dois dias quase inteiramente deitado, para depois resolver correr no hospital e verificar se estava tudo bem. O médico da emergência do posto onde o pai trabalhava pediu mais exames porque as queixas não batiam. Não fazia muito sentido as reclamações dele, com o que o clínico-geral silenciosamente raciocinava.

Não fazia mesmo.

Para uma pessoa sadia.

Era um câncer.

Não naturalizemos essa doença. Mas entendamos que ela pode aparecer.

Inesperadamente. Literalmente a qualquer momento.

Apareceu para o Machadão, de vinte e um anos. Que disse que era forte, que aguentaria, que faria todo o processo de quimio necessário, mas que também se questionava sobre como um sistema de saúde que se propõe a oferecer o básico para a população, para ele próprio tinha ficado tão distante desta proposta.

Ele continuou indo para a faculdade. Começou o tratamento da quimio e outros paliativos. A vida do rapaz foi do céu ao inferno e não há exagero nessa fala. Mas ele tinha sorte. Por toda rede de apoio que tinha, foi cercado na mesma instância e extravagância. Por ter contatos conseguiu acesso a muita coisa. Recebeu todo apoio da família e amigos em tudo que fazia.

Entre sessões intravenosas e intermusculares, Cléber conheceu uma colega de quarto. Que esquecera de perguntar o nome, mas que já estava lá há um tempão. Ficaram dois dias juntos durante uns picos de náuseas que ambos tiveram em tempo quase magicamente similar.

Riram muito das bobeiras da vida. Se conectaram. Apesar da diferença de idade. Antes que pudessem trocar telefone, a senhora da maca ao lado, teve uma parada cardíaca durante a madrugada. Precisou ser levada para o CTI, porém Cléber logo foi liberado. Continuou um tratamento alternativo e as coisas foram avançando.

Alguns meses se passaram. O câncer dele regrediu, finalmente. O pai cuidou cem por cento do tempo, abandonando até o emprego. Eles tinham uma reserva guardada para o carro novo que comprariam no final do ano, acabaram gastando, mas pelo menos, o mal havia se afastado. Até quando, nem quem nunca teve câncer saberá.

Entre aulas no Casarão Velho e no Novo IACS, ele esbarrou bruscamente numa senhora ao atravessar a rua e logo pediu perdão.

Ele teve um estalo, um parar, um congelamento, uma respiração lenta e profunda. Quantas vezes você vê a sua vida na sua frente? Só que em outra pessoa? Quantas vezes você não vê?

Não era qualquer senhora. Era a sua colega de maca ao lado, que estava andando aos prantos pelos corredores da faculdade do rapaz.

- Meu deus, como você está e o que você faz aqui?

- Meu filho...

- Afinal, qual seu nome?

- Caroli...

Ela não conseguiu dizer nada. Ela só chorou.

Foram alguns minutos até ele entender que ele havia se curado porque, apesar de não viver uma vida de luxo, ainda assim mesmo, tinha acesso, condições, reflexões, uma rede de contato, uma cor de pele mais clara, que havia permitido que ele tivesse uma oportunidade de cura mais facilitada e que a sua ex-colega de cela, cela, cela, ainda estava absolutamente perdida na vida porque não tinha a mesma rede de apoio que o Machadão teve para então um dia, quem sabe talvez, depois de ser tudo e mais um pouco, se tornar o próximo Cléber Machado.

- Veja bem, não estou comparando situações até porque elas são distintas.

Quem disse isso???

Bem-vindo ao Rio de Janeiro do Cléber Machado, das pérolas dele, das coisas que somente ele proporciona, do Clébão, do Machado, do Machadão, do homem em construção.

Espero te ver na TV no futuro, okay!

Só não me diga mentirinhas, dói demais.

Que a Mão de Fátima abençoe sua caminhada. Esse símbolo é conhecido por auxiliar as pessoas, guiá-las e até ensiná-las sobre as situações vividas. É também um objeto ligado à sorte.

Importa você saber que você, Machadão, é um sujeito de sorte.

-A Fênix

Um comentário:

  1. Que honra por você ter escrito essa crônica Dona A Fênix. Amei tudo, a história, os resgates de pontos específicos de outras crônicas do Machadão, o estilo. Não é porque essa crônica fala de mim, mas ela é genial, simples assim.

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