sexta-feira, 28 de abril de 2017

Crônica do descobrimento

No horizonte vê-se homens, mulheres e crianças. Cada vez mais perto. Os conterrâneos observam intimidados.
- Eles nos descobriram.
- Como nos descobriram se sempre estivemos aqui?
- Não sei, mas imagina se querem que a gente sirva a eles?
- Imagina, nós sempre mandamos por aqui.
- Olha lá, chegaram nos nossos campos verdes. 
- Não vamos deixar que tirem nossa paz. Se não reagirmos ficaremos como os preguiçosos da história.
- Precisamos cercá-los até que não tenham pra onde fugir.
- E fiquem sem chão?
- Isso. Sem chão.
Bombas e tiros pelo ar, a multidão corre apavorada pelos imensos campos verdes. Brasília, 2017.

Eduardo Galeano

​ Índio Cara Pálida

Na nudez da terra nova de verdes nuances, meu corpo nu se destacava. A dança do mar e seu balanço se ritmava aos rituais. Nossa tribo não tinha medo. Tigre, cobra, jacaré; nós tínhamos o nosso pajé.
Mas o mar dançou diferente aquele dia. Nem as palmeiras nos traziam tranquilidade.
Uma criatura das águas se aproximou: ela trouxe homens brancos.
Tentaram nos prender, tentaram nos escravizar, tentaram nos exterminar. Conseguiram.
As ocas diminuíram, os pajés perderam força, meu cocar agora tem menos penas. A zarabatana não funciona mais tão bem, minhas flechas os machucam, mas suas armas assustam mais. O cacique se impõe, mas o homem branco de grandes terras tem mais voz contra nós. Me visto, me cubro, me calço, mas ainda não me enxergam. Meus tambores gritam, ecoam, mas ninguém escuta.
Não sou escutado e não sou compreendido.
Falo tupi-guarani, mas aprendi português.
O homem branco ainda não dá me ouvidos.

Sufocado, sem espaço, sem identidade, sigo resistindo.

Sunny
Dia 25 de abril de 2017, Bepiton Xikrin acorda e mais um dia já sabe de sua missão. Dorme mal, prefere o cheiro de sua terra no Pará. E era por ela, seu cheiro e suas riquezas, que dormia mal e que estava em Brasília ao lado de sua tribo, os Xikrin, e mais aproxidamente 3 mil índios de dezenas de outras tribos indígenas habitantes de terras brasileiras. Levanta em meio ao clima tenso que paira no acampamento desde que chegaram. Sente desespero, muito mais do que raiva, a qual dominava os pensamentos dos os outros indígenas. Desespero por sentir a possibilidade de perder teu lugar, tuas origens, tuas tradições, tua mãe,tua vida, tua terra. Queriam tirá-la dele pouco a pouco, até o vestirem, o empacotarem e o puserem em uma fila de emprego em meio ao caos do centro de uma cidade grande.
Só que este sentimento não é o único que domina Bepiton, junto a ele sente também o orgulho, orgulho de ser indígena Xikrin. Com isso no coração, ele põe tuas vestes, tua cultura, pega teu arco e tua flexa e vai exigir o reconhecimento de sua terra. Vai exigir que o reconheçam parte, filho dela. Vai lutar se for preciso, vai com tua sabedoria e garra falar aos mais novos, falar ao novos habitantes que se acham donos, donos de terras das quais eles não sabem é nada. Vai com tua pintura, teu arco e teus irmãos. Vai em busca de demarcação.

Diana Knowles.

Quem descobriu esse Brasil?

Hoje na escola a professora me ensinou que os portugueses descobriram o Brasil. Que eles vieram para cá buscar pau-brasil e algumas coisas que tinham em nossas terras, que os índios que estavam aqui aprenderam as coisas lá da igreja, que eles ganharam ferramentas e puderam começar a trabalhar. A professora disse que eles pescavam, caçavam e cultivavam. A vida deles era tranquila, viviam em harmonia com a natureza. Suas casas eram simples, moldadas com o que a floresta tinha para oferecer.
Os colonizadores eram tipo heróis com sua ciência, trouxeram luz a um local antes nem um pouquinho desenvolvido. Com facas, ferramentas, espelhos, diversas coisas que tomavam lugar de objetos improvisados, assim os índios conseguiam fazer mais atividades. Eles dominavam os animais, moldavam a natureza, para os índios pareciam quase que ter superpoderes.
Hoje eu vi na TV que um montão de índio tava lá em Brasília, eles tavam gritando, estavam nervosos e eu não entendi bem, perguntei pra mamãe e ela não sabia explicar. Eu acho que eles tavam tristes com os portugueses. Eu vi outro dia na TV que iam tirar a casa deles, fiquei muito triste.  Mamãe sempre diz pra não aceitar nada de estranhos, confio mais nela do que na Tia Rute. Imagina se me tiram daqui da minha casa. As índias na Tv estavam muito tristes, devem ta tentando tirar algo muito importante delas.
Eu sempre fico pensando, o menininho tava triste. E se fosse eu? Tiraram a casa deles. E se fosse a minha? Falaram que eles não fazem nada. Eu tenho que obedecer a eles? Os portugueses tão numa casa grandona, por que o menino não pode ficar na dele? Mãe, se eles quiserem pegar os meus brinquedos, eu não vou deixar. Mesmo que eles fiquem falando, mesmo que eles fiquem nos castigando, o que é meu, é meu e eles não vão levar.

Luiz Inácio

Indígenas Cidadãos

Somos minoria, estamos em maior número; habitantes mais antigos, com mínima representatividade e número minguante de direitos. TEMOS DIREITOS: Em direção ao Congresso Nacional march... BOOM! b__g ba_g bang B_O_! _ang bang... A repressão policial não falha, tirando integrantes de nossas tribos.
Retiram, eles, nossas conquistas, e  o direito de lutarmos por elas; aqueles que estão em menor número, mas não são uma minoria. Brasil, Brasília, fazendo nós índios de seu território em uma ilha. Isolados de toda a civilização, perdendo terras, nossa porção.
                                                                                     Ezra Nassar Guimarães

“Não foram eles que chegaram primeiro?”

A viagem de metrô naquela quarta-feira foi diferente. Fiquei perto de uma mulher acompanhada de uma criança, talvez fossem mãe e filha. A mãe parecia concentrada em um jornal onde na primeira página constava em letras garrafais a seguinte manchete: “EM BRASÍLIA, INDÍGENAS ENTRAM EM CONFLITO COM A PM DURANTE MANIFESTAÇÃO”. Visivelmente curiosa, a pequena cutucou a mãe daquele jeito insistente que toda criança faz, e quando conseguiu a atenção que queria, apontou para a imagem onde uma mulher indígena era amparada por dois homens e soltou a primeira pergunta: “o que houve com ela, mãe?”. Sem tirar os olhos do jornal, a mãe respondeu: “ela estava num protesto e deve ter sido machucada”.

Eu sabia que provavelmente a mãe estava com aquele olhar de quem sabia que iria receber uma enxurrada de perguntas, por isso até dei uma risadinha, mas me atentei à conversa. “Por que machucaram ela?”, indagou a menina. “Talvez ela tenha feito algo errado”, respondeu a mulher. Eu achava que ela estava certa. Eu nunca havia visto essas manifestações com bons olhos, sempre defendendo algum partido corrupto e pior, utilizando as pessoas como massa de manobra. E além disso, ninguém apanha da polícia à toa, não é?

“Por que os índios estão fazendo isso?”, a garota continuou. A mãe parou para pensar por algum tempo. “Meu amor, os índios estão lutando pelas terras que são deles por direito, mas que tomaram deles e não querem devolver. Estão lá em Brasília para pedir ajuda do governo”. A menina fez cara de confusa e tornou a perguntar: “E o governo não quer ajudar?”. A mulher parecia não saber o que dizer. Mas criança é criança, e todo mundo sabe que não dá pra deixar de responder os seus questionamentos, típicos da fase. “Acho que não, filha”.

Elas ficaram em silêncio por algum tempo e eu estranhei. Inclinei o corpo discretamente para observar e notei que a menina parecia chateada. Mas, de repente, ela voltou a falar: “Isso é tão errado, né, mãe? Eles devem estar se sentindo tão mal, sem nem ter onde viver... Eu já vi na escola que muitos índios são tratados que nem escravos pelos donos das fazendas e são até mortos... Mas mãe, não entendo essa confusão toda! Por que tomaram as terras deles e por que estão tratando eles desse jeito? Eu estudei sobre o descobrimento do Brasil ano passado e eu lembro bem, não foram eles que chegaram aqui primeiro?

Ao ouvir aquilo, parei para pensar no julgamento que havia feito há poucos minutos e senti um pouco de vergonha. As palavras da criança começaram a ecoar na minha cabeça e não pararam mais pelo resto da semana. Afinal, não foram eles que chegaram aqui primeiro mesmo?

Lukas Salazar

Velho Centro-Oeste


Quando ando pelas ruas a caminho de meu trabalho gosto de me imaginar em outros lugares, passo a passo na minha mente os prédios modernos se transformam em casas de madeira, os carros viram cavalos, o barulho da cidade se silencia e quando paro para ver a criação de minha mente, estou no velho oeste.
Sempre me perguntei se esses cenários que via nos filmes de bang bang quando menina realmente existiram em algum ponto do tempo ou se eram apenas uma invenção hollywoodiana, mas vamos deixar essa dúvida pra lá e aproveitar esse leve delírio.
Passo do lado de fora de um saloon, observo as portinholas e penso em entrar apenas para poder usar essas portas que sempre sonhei em ver ao vivo, porém antes de poder realizar meu desejo algo na rua me chama a atenção, um grupo de cowboys se prepara para mais um embate por terras contra os temidos índios. entro em uma das carruagens para acompanhar de perto esse legítimo filme de faroeste em frente aos meus olhos.
Os cowboys atiram para o alto avisando nossa chegada. Ouço tiros de um lado para o outro, muitos gritos logo em seguida, não me sentia mais confortável para ver o espetáculo que esperava presenciar. Uma flecha perfurou o pano da carruagem, como seria possível os índios acreditarem ter chance contra nós usando armas tão arcaicas, a força humana não é nada perto do poder da pólvora.
Tomo coragem e saio da carruagem no meio do caos para ver o que estaria acontecendo, vejo os índios partindo em retirada, um deles parece machucado com seus companheiros aos seu redor tentando acalmá-lo, mesmo com o medo estampado em seus olhos. A cena me choca de tal maneira que não quero mais viver esse delírio que criei, só quero sair daqui. Pisco meus olhos e volto a ver minha realidade, estou parada, de frente para uma banca com a cena que pensei estampada no jornal do dia, o cenário pode ser diferente, mais moderno até, porém a cena pitoresca é real, e assim como no meu delírio os índios que lutavam por suas terras são massacrados pela modernidade.

Morena_de_Inhaúma_23

Entre Stephen King e Michel Temer

Era uma terça-feira, dia de protesto na capital do país, dia de lutar pelo que era dele por direito. Cada vez mais isso se tornava uma rotina. Kaluanã, "guerreiro", como seu nome ja diz, estava sempre à frente dos movimentos de resistência de seu povo. Já havia perdido inúmeros embates com madeireiros e construtores, mas jamais havia chorado ou ficado com medo, porém isso estava prestes a mudar.
  Com suas roupas tradicionais, seu cocar, pinturas e arco e flecha, Kaluanã, junto a uma massa de companheiros de batalha, se aproximou a um enorme palácio. Logo à frente ja podia ver outras tribos na concentração. "Quanta expressão", tal pensamento veio à sua cabeça ao ver uma imensidão de cartazes e pessoas protestando. O deslumbre foi-se embora assim que se deparou com centenas de caixões pretos. Os caixões remeteram-o a seu irmão mais novo, que por desgosto havia tirado sua própria vida no final do ano que se passara. Esse era, afinal, o propósito deles, denunciar de forma impactante a morte de seus entes queridos nos últimos anos.
  Os caixões foram erguidos e carregados em direção a um espelho d'água. No meio do caminho, Kaluanã começou a perceber uma espécie de fumaça aparecendo em forma de nevoeiro. Seus olhos começaram a queimar e lágrimas de dor passaram a escorrer por seu rosto. De olhos cerrados, via vultos batendo em retirada, quando sentiu uma dor intensa e aguda em seu peito. Perdeu o ar por uns instantes que mais pareceram uma eternidade. Havia recebido um tiro, que mesmo não sendo letal, fora capaz de matar algo que ele até então considerava imortal, sua bravura. No chão, completamente desabilitado e com medo, Kaluanã olhou pra cima e enxergou uma figura grande e vil, vestida de preto, de escudo e porrete na mão. Esse ser, junto a outros igualmente fardados, seguiu aterrorizando todos que se mantinham em meio à fumaça.
  Homens e mulheres de todas as idades, correndo desesperados, choro e berro por todo lado, nomes sendo gritados com o intuito de localizar aqueles que se perderam na névoa do mal que só aumentava, pessoas deitadas, algumas delas sangrando. Quem não sabe do que se trata, pode até pensar que estou narrando "O Nevoeiro", mas não, estou narrando uma história muito mais assustadora.

Por Paulo Terra

Meu corpo pardo

Preciso falar rápido, eu não tenho muito tempo. 
Mas já tive.
Estou quase extinto, mas já tive tempo, tive espaço.
Na terra do meu sangue eu já não dou nem mais um passo.

Do meu chão, do meu verde, do meu pau brasil e da ganância deles: Brasília.
Os recebi com a minha natureza, eles retribuíram com tirania.
Eles se esqueceram dos corpos pardos,eu os levei 200 caixões negros.
Do meu canto se fez silêncio, da minha voz, choros de medo. 

Minha força caiu quando a arma disparou, minha voz cessou quando seu deus me sufocou e minha dança morreu quando tiraram o meu tesouro: a minha preciosa terra, não o maldito ouro. 

Por Tyler Durden

Luta, Luana

Luana. Luana não é um nome de índia, meu povo diz. É um nome bonito, a professora diz. É apenas um nome, eu digo.
Luana foi o nome que meu pai resolveu dar a mim quando vim ao mundo há exatos dezessete anos atrás, ele diz que era um bonito dia, estava sol, porém não quis me chamar de Solar, ao contrário, este foi o nome de minha irmã mais nova. Papai diz que já previa uma noite com lua bonita, e Luana parecia combinar mais comigo. Já minha mãe diz que Luana é um bom nome para pronunciar e me enturmar entre o povo branco... pff, que besteira. Eu sempre achei que o povo branco fosse me aceitar mesmo tendo a pele mais escura, os cabelos mais escuros e os olhos também, mas não é bem assim. Bom, a professora da aldeia gosta de mim
O meu pai adoeceu, uma tal de febre amarela o pegou ainda essa semana, na semana onde nosso povo estava se preparando para ir de frente contra o homem bagunceiro que quer desordenar nossa casa e não liga pra gente; os brancos chamam ele de presidente, né? Fomos apenas eu e minha irmã para frente do Congresso Nacional. Era uma festa bonita. Muitos povos unidos, eu me senti em casa, isso até aqueles homens apontarem as armas para nossos rostos pintados. Isso não era contra lei? Índios não sabem usar arma de fogo, índios puxaram seus arcos e suas flechas: então era guerra.
O que antes era uma festa bonita e rostos iluminados, agora era só fumaça, gritos e gente chorando por uma dor; seja por um machucado ou pela dor de estar sendo atacado só por lutar pelo direito de querer viver e ter seus direitos, assim como todo ser terreno tem – ou era para ter. Eu vi o desespero e a fumaça sob o céu azul em um lindo dia de sol, igual àquele que eu nasci. O mesmo dia que meu pai decidiu me chamar de Luana. Se todos já tem uma opinião formada a respeito de meu nome, chegou minha vez de opinar sobre mim mesma: eu decidi ser Lu(ta)ana a que não vai desistir de sua casa, de seu povo.

– JACKSON

Pra cego ver

O que hoje enxergo como mais uma assustadora opressão, nunca vi sem romantismo na televisão. Quão injusto seria eu, branca e descendente de portugueses, não citar a minha culpa?
No dia do índio fiz um cocar na escola e pintei o rosto. Alguém levantou por alto a questão cultural, com um pensamento egoísta e um tanto cego, lembro de pensar que esse foi grande serviço feito para nós. Tudo tão bonito! Tudo tão vivo! Mas não, tudo quase morto. Não me disseram qualquer coisa sobre as condições e sobrevivência dos índios, não interessava e nisso eu nem pensei.
Os homens brancos tiram todos os espaços que não poderiam e nenhuma consequência faz cessar. Nem as doenças trazidas ou a poluição que se espalha, tampouco a corrupção que tanto se questiona mas nunca em um julgamento de si.
Pequenos homens que usam terno instigam mais destruição e batalhas que nunca têm final. Os inimigos reais deveriam ser representantes de um todo, porém ordenam de costas enquanto brindam com champanhe no planalto.
O Brasil não foi descoberto! Quem estava aqui muito antes foi a todo tempo obrigado a se retirar, mas não foram todos calados. Os que ainda resistem sofrem o etnocídio na mesma essência de 1500.
Trocamos a chance de aprender sobre proteção por pensarmos em ganhos rasos. É irônico como ainda assim se fala muito em sustentabilidade, quando nunca se fez.
Nos mascararam e nós mascaramos. No meio das explicações sobre as conquistas de territórios, esqueceram de mencionar perdas maiores. A todo tempo excluímos suas lutas e impomos nossas guerras.

Ritinha N. Garcia 

O QUE O ÍNDIO QUER?

Índio quer terra
Índio quer o que é seu por direito
Índio quer uma parte de volta do que começaram a tomar dele em 1500
Índio quer sua terra sem madeireiras
Índio quer mais representação
Índio quer protestar sem levar gás lacrimogênio
Índio quer protestar sem precisar ser carregado depois de tanto inalar gás
Índio quer protestar sem levar bala de borracha
Índio quer que o jeito que ele fala não seja estereotipado num textinho mixuruca
Porque índio é gente, e por mais que nossos fazendeiros e deputados não pareçam entender isso, não são selvagens. Querem apenas o que é deles de direito. Querem apenas que tantas vidas deixem de ser ceifadas sem justiça nenhuma, sem atenção nenhuma. Sem comoção nenhuma.
Índios querem apenas que a exploração que começou 1500 termine algum dia, e que termine rápido. Porque poucos deles infelizmente sobraram.

Omar Larossa

Quem Chegou Primeiro

Era uma vez um povo que trabalhava. 
Era uma vez um povo que festejava. 
que sorria. 
que vivia. 
amava. 

Amava? 

Sim. Mas não foram amados senão uns pelos outros. 

E quem chegou depois não soube trabalhar ou festejar. Sorrir, sim. Mas às custas do choro de quem já estava por aqui. Viver? Não, viver não. Porque viver não envolve acabar com os direitos dos outros. O nome disso é destruir, violar, desrespeitar. Viver, não. 

Mas era uma vez um povo que vivia, e ainda vive. Era uma vez um povo que amava, e ainda ama. E mostra que amor é quando você não desiste de lutar pelo que é seu. É quando você, mesmo em meio à luta, olha pro lado e percebe que alguém precisa dos seus braços para permanecer de pé. 

Apesar dos constantes esforços de quem chegou depois, quem chegou primeiro ainda existe. E resiste. E não serão bombas de gás que os farão desistir. 


Carolina Caracol

Uma história (in)acabada

Mulheres aos prantos sufocadas por sprays de pimenta. Homens feridos, atingidos por balas de borracha. Pessoas correndo sem direção, fugindo de bombas de efeito moral. Homens, mulheres, adultos, jovens e crianças. Sim, crianças... O elo em comum? Pertencerem a uma mesma etnia. De índios, mais especificamente, representantes legítimos de nosso povo nativo, perdido desde o momento em que foram "descobertos".
  A Esplanada dos Ministérios assim se transformou em um verdadeiro campo de guerra no último dia 25, quando indígenas do movimento "Demarcação Já" faziam um protesto pacífico em frente ao Congresso Nacional. Ao contrário de seu povo que, em 1500, recebeu os portugueses apenas com desconfiança, os índios foram recebidos com muita confiança e afinco, em serem reprimidos. E a cena se tornou emblemática justamente por isso, por retratar fielmente o modo como, historicamente, o colonizador enxergou e continua a enxergar o colonizado.
  Em 1500, o povo indígena foi dizimado, desapropriado, escravizado e aculturado. Em 2017, as marcas desse legado histórico continuam evidentes, e eventos como esse servem para cada vez mais se ter a certeza disso. Os malfeitores de outrora agora vestem farda e estão a serviço de uma lei que, por mais que os impeça de cometer os mesmos crimes do passado, permanece direcionando suas ações repressivas aos mesmos alvos. E assim caminha a história de um povo que luta por sua dignidade, mas, sobretudo, por seus direitos.




Nick

Eles

Eles, correndo pelo gramado do Congresso Nacional, empunhado flechas e a consciência de seus direitos. 
Os outros, com sprays de pimenta, bombas de gás, balas de borracha e brutalidade.
No palco da repressão que há não muito o país viveu, o enredo não mudou.

Eles, que existem e se uniram de todos os cantos do Brasil. 
Eles, Guarani, Kayapó, Arara, Suruí, que já tantas vezes lutaram, e perderam. Perdem. Suas terras, seu povo. Sua história. 
Genocídio.

Eles, trajando aqui e ali traços da desintegração de sua cultura tradicional, deixando à mostra a passagem do homem branco por ali. 
Eles, reduzidos a personagens de livros de história. 

Eles não foram ouvidos. Jornais mal noticiaram. Autoridades mentiram seu número. Quem podia fazer alguma coisa não disse palavra.

Mas eles seguem. Último suspiro do legado do Brasil. Clamando para que não haja um retrocesso do que não tem como ficar pior. 

Eve

Palácio dos Ladrões

O menino tentava, sem sucesso, cessar os pensamentos sobre o que o pai lhe contara.
     Sentia dificuldade em entender certas coisas. O pai era sempre paciente, e o garoto já sabia o que era se sentir protegido. Entretanto, algo lhe fugia à compreensão: por que precisavam lutar por uma terra que, por direito, eram donos?
            O pai havia lhe dito que o dia seguinte seria importante. Ao questioná-lo sobre o que aconteceria, o menino recebeu uma complicada frase em resposta:
     — Iremos reivindicar nossa terra. — falou, em tom sério.
O garoto ansiava por entender o que estava acontecendo. A movimentação no acampamento era intensa. Fosse lá o que estava por vir, o sentimento de preocupação estava no ar.
Sentia medo por estar tão longe da aldeia. Tudo era tão gigantesco, tão chamativo. Não era possível avistar florestas durante muitos quilômetros, em qualquer direção. Sentia vontade de correr de volta à aldeia, de onde jamais deveria ter saído. Tamanhas construções não faziam sentido.
 A marcha começara logo cedo. Seu pai, um dos líderes da tribo, guiava-os pelas extensas avenidas. Parecia conhecer o lugar. A caminhada encontrou seu final no que parecia ser um estranho monumento. Um estranho... palácio. Mais tribos aglomeravam-se ao redor, unindo-se umas com as outras. O pai gritava, incentivando os iguais. Ali estavam, segundo ele, para reivindicar a própria terra.
Porém, à medida que mais tribos se juntavam ao coro, mais os homens que o menino havia observado se aproximavam. Tinham o rosto coberto, assim como o resto do corpo. Formavam uma barreira para proteger o palácio; não pareciam querer as tribos ali.
 Subidamente, ouviu-se um estrondo perto de onde o garoto estava. Mais um estrondo, e outro. E mais um. Uma densa fumaça já tomava conta do ar, e o pai agora corria em direção ao menino.
O pai tomou-o nos braços, já procurando abrigo. Sem reação, o menino assistiu aos iguais da tribo lutando contra os de rosto coberto. Chorando, ele perguntou:
             — Que lugar é este, pai?
             — Este, meu filho, — falou o pai, colocando-o no chão. — é o lar daqueles que roubaram nossa terra.

Amon Valapar

O País Era Nosso

O país era nosso, até que eles chegaram. Caras maus, em suas caravanas de caravelas, com seus costumes, sua cultura, sua religião. Homem branco que chegou pra dizimar, pra aprisionar. Caras-pálidas com carabinas trazendo caos. Trouxeram muitas coisas, não trouxeram compaixão. Compaixão que Jesus - um cara que eles tanto falavam e temos certeza que era dos nossos e estava era do nosso lado - ensinava e pregava.

E assim eles chegaram, querendo nos doutrinar: coloniza a terra, evangeliza, coloca roupa, escraviza. Estava claro que se viam como superiores. Eles eram humanos, nós éramos outros bichos quaisquer que estavam ocupando uma terra que agora era deles. Afinal, eles a tinham descoberto. Mas, antes de tudo isso, a terra era nossa. E, segundo o que hoje antropólogos supõem, era nossa desde bem antes daquele tal de Jesus ter nascido. Essas terras eram nossas há pelo menos dezenove mil e quinhentos anos. Mas, isso pouco importava.

Não importava quando havíamos chegado, não importava o que pensávamos (para eles, nós nem fazíamos isso), não importava nossa cultura. Nada importava, porque nós não éramos importantes. E se servíamos para alguma coisa, era exatamente para servir. Servir a um Deus que não era nosso, a um rei que não era nosso e a um povo que também não era nosso. Assim como da terra, que para nós era sagrada, o homem branco só queria uma coisa do meu povo. Sem Cacique, eles só queriam cacife.

Quando chegaram, éramos cerca de cinco milhões. E, quando disse que vieram para dizimar, não utilizei de hipérbole para comoção. Pois hoje, somos menos que 325 mil. Somos 0,2% da população. Nossa população foi se reduzindo aos poucos. Teve escravidão, epidemias, deslocamentos, conflitos com fazendeiros e garimpeiros... Alguns dos nossos, não aguentando o sofrimento que passamos, chegaram a suicidar-se. E assim fomos morrendo. E a cada vez que nosso sangue era derramado, um pouco de cada um de nós morria com um dos nossos irmãos. Mas a pele vermelha lançada ao chão servia também de combustível para lutarmos.

E foram lutas atrás de lutas. E mesmo que, após o monarca ser trocado por um presidente, nos tornássemos obrigação do Estado e que esse criasse lá em 1910 um serviço para nossa proteção, não podíamos parar de lutar. Proteção a nós só existia no nome do instituto criado. Talvez também existisse em suas normas e regimentos. Escrito, pode até ser. Mas a realidade, não mudara. Ainda era de luta. Afinal, até quem devia nos proteger nos escravizava, explorava e matava.

E passaram décadas atrás de décadas. Chegamos ao Século XXI. Estamos em números tão pequenos que já nem incomodamos tanto - exceto quando fazemos barulho para ter um pedaço de um território que antes era inteiro nosso; ou quando deixamos de nos calar pelas mortes dos nossos.

E mesmo não trazendo lá tanto incômodo, ainda somos vistos como problema. Hoje, 517 anos depois, nosso sangue continua sendo derramado. Por civis ou pelo Estado, em Brasília ou no Amazonas, continuamos precisando resistir para existir. E essa luta continua tendo sangue escorrendo em nossa pele vermelha. Sangue nosso, sejamos Guaranis, Caiapós, Cariris ou pertencentes a qualquer uma das tantas tribos que há do Oiapoque ao Chuí. E persistimos unidos. E assim permaneceremos, com a esperança de que, um dia, seremos reconhecidos como os filhos desse solo e teremos essa pátria como uma mãe gentil. 

Laura Haruna

Dos filhos deste solo não és mãe gentil

Demarcação, eu pedi. 
Com licença, dêem-me, por favor, o direito de ter o território que descobri. 
Engraçado, nada me deram e nada me darão. Por quê não? Ora, tudo já lhes dei. Nesse país cheguei, povoei, me criei mas, ao contrário dos que hoje por aqui tem vez, não explorei. Na floresta, açaí, guaraná, bacuri, piquiá, cupuaçu, angá e até a catuaba encontrei. Ah, tomou banho hoje? Pois é, também isso para sua cultura trouxe. 
Agora a ti, licença, piedade, por favor, bondade sou obrigado a pedir. Para meu território? Tenho que lutar! Mas avalie bem, não seria obrigação do Estado, do plenário, de você, reconhecer o meu lugar? A questão vai muito além, o foco principal, infelizmente, do meu lado não advêm: a resposta, a violência, nossos direitos à desdém. 
"Corre! Chamaram a Tropa de Choque”. Gritaria, fumaça, crianças, mulheres, idosos e jovens, e, em meio a tanta confusão, o vermelho de guerra é demarcado com nossos sangues no chão. Não quero pagar na mesma moeda, mas a vida de quem bate de frente com o sistema, já tem autodefesa como regra. Revidamos honrando a história e tradição, olhos atentos, coragem, arco e flecha em mãos. Encurralados, viramos minoria em meio a maliciosa arquitetura de Brasília. Mas calma, tudo bem, lembro de ver meu povo sendo maltratado, invisibilizado, exterminado desde que me entendo por gente, não seria agora a ocorrer de forma diferente.

Amora Flor

Os índios, a luta e a menina


Era uma tarde cinzenta de terça-feira, Ana estava vendo TV ao lado de sua avó que terminava de fazer algumas costuras, bem como todas as tardes da semana.
– Ana, põe no 7 que já deve ter começado o jornal – disse sua vó.
A menina, aborrecida por ter que trocar o seu desenho pelas notícias, obedeceu.
Havia pessoas correndo, muita fumaça e até mesmo um homem ferido.  O que a repórter dizia, fez Ana se questionar:
 Vó, o que é bomba de gás lacrimogênio? E spray de pimenta? Por que a policia está machucando essas pessoas? – disse a criança assustada com as imagens na tela.
 Essas pessoas são os índios, querida.
– Ah, os índios são aqueles que já estavam aqui antes de descobrirem o Brasil, né, vó?
– Isso mesmo.
– Mas por que eles estão correndo? O que eles fizeram de errado?
– Eles não fizeram nada, queridaEstão ai apenas lutando por seus direitos.
– Mas que direitos?
– Eles querem as suas terras, querem ter voz.  E pra isso, eles precisam protestar, porque o governo não se importa com eles.
Assim, a menina continuou a ouvir a repórter falar sobre confronto com a polícia, flechas e balas deborracha. Mesmo sem entender, assistiu a reportagem até o final, foi para o seu quarto e pensou em tudo que tinha visto e o que a sua vó havia dito. Voltou para a sala e disse:
– Vó, me pergunta o que eu vou fazer quando crescer.
– Ué, não vai mais ser médica?
 Não, eu vou defender os índios.

Mahara

Não Somos Apenas Sua Fantasia de Carnaval

“Isso tudo é culpa dos portugueses que não finalizaram o trabalho”
A frieza estava assentada no ambiente. Aquelas cruéis palavras do homem fardado se perderam na nebulosidade dos gritos, das lágrimas. Enquanto isso, a fumaça se fazia vitoriosa, dilatando e dilatando. O lugar era seu. Mas já fora deles.
“Eu não entendo. Não fizemos nada de errado. A TV não tá falando o que realmente aconteceu. Não houve confronto. Houve um atentado.”
Com a mão no peito, ela saiu auxiliada por seus colegas. A tinta vermelha que realçava sua pele vermelha já desvanecia. Arfava incessantemente. Estavam sendo expulsos de um protesto pacífico. No dia seguinte, seus olhos já não queimavam, mas mergulhavam em lágrimas. Balbuciava tais palavras inutilmente. O estrago midiático já tinha sido feito. Eram novamente adversários públicos.
“Mete bala nessa cambada de inútil.”
As vias paradas. O caos na cidade. O velho sentado em frente à TV bradava, crente que violência era a única solução. Entrava o intervalo comercial e ele estava satisfeito com patriotismo falso moralista. Consciência limpa. Sua tela escure e começam a aparecer algumas crianças raquíticas, um ambiente miserável de seca do sertão. “Seja um doa...”. Desligou a televisão.
“Não somos apenas sua fantasia de carnaval”
Silêncio.

Alice Moon

GUERREIROS DO BRASIL

Lá estavam mais uma vez. Açoitados pela prepotência, desmoralizados. Por onde anda

a menina dos olhos desse povo? Raízes dessa terra. Mais dignos não há.

Meus olhos não enxergam, já não me vejo no reflexo dessa água cristalina que os

homens brancos a pusera só para enfeitar, na garganta a sequidão, não posso falar,

nos olhos a tempestade no olhar, que diabos é essa coisa? Doí por fora e fere por

dentro, querem tirar de nós nossa resistência e nossa história, o arco e a flexa onde é

que tá? Cadê minha riqueza ,quanta pobreza, não se pode lutar.

Mataram o cacique, chegaram nas terras dizendo para aquela gente que lá não era o

vosso lugar e que o dialeto deles ninguém mais falará. Filhos e filhas o que irão

herdar? Quanta gente doente, doente da alma, gente que não sabe se importar.

Levaram para tribo a desolação, uma tal doença traga nos primórdios desse encontro

entre as raízes dessa terra e uma nova “civilização.”

Purís, Goitacases, Caetés, bravamente lutaram, mas não foi possível impedir a tirania

dos homens brancos bem vestidos a mata-los. Numa era onde a palavra é a arma,

cavalaria armada tiram daquele povo o direito de falar. Índio, ferido, esquecido pela

pátria por mais quantos séculos resistirá?

Isabel Cristina Bragança

Nada de Novo



Eu vim do Cairo. Dentro de uma masmorra de navio, amontoado com meus irmãos, arrancados de nosso lar. Tentaram nos fazer esquecer nossos nomes, costumes e língua. Tentaram. Resistimos. Mas ainda hoje carregamos as marcas de quando os kingundu andavam sobre o assoalho acima de nós. Foi diferente para vocês. Vocês sempre estiveram aqui. Mas isso não impediu que o tratamento dado à nós não fosse semelhante. Vocês também resistiram. Viveram para ver sua própria terra lhe ser arrancada das mãos. Não há nada de novo nesta terra.

Temos muito em comum. Eu entendo. Vocês sabem. Nós nos reconhecemos.

Não há nada de novo nesta terra. Os kingundu fizeram com vocês o que fizeram conosco. Transformaram kingundu em candango. Tornaram-se os “homens de bem”, sempre às custas de alguém. Tomaram sua língua e utilizaram-na como quiseram. Roubaram tua figura e dela desfizeram.

Fizeram de vocês livro. Fizeram de vocês lenda. Fizeram de vocês conto. Folclore.

Não há nada de novo nesta terra. Homens brancos continuam portando armas de fogo e índios arcos e flechas. O massacre continua. Vocês hoje pedem licença, como alguém que pede permissão dentro da própria casa. Os donos da terra.

Terra sagrada. Terra colonizada. Terra dominada. Terra arrasada.

Não há nada de novo nesta terra. O espelho d’água é a metáfora do que lhes restou de seu Xingu. Espelho da colonização, reflexo do que nunca haviam visto. Se reconheceram por um alto preço. Terrível ironia do destino. Hoje, olham no espelho e veem caixões. Xingu é o tamanho da dor.

Xingu de terra preta. Xingu de terra parda. Xingu de terra branca.

Não há nada de novo nesta terra. Os brasileiros escolheram seu lado no embate, mesmo filhos híbridos, de pai do Velho Mundo e mãe violentada: fala-se português, não se conhece o guarani. Ou tupi? Não sei ao certo. Sua história me foi contada apenas pelo homem de bem. Peri e Ceci.

Temos muito em comum. Eu entendo. Vocês sabem. Nós nos reconhecemos.
Não há nada de novo nesta terra. Nunca.

Setekh, O Redimido