quinta-feira, 13 de abril de 2017

Magote

existe uma extensão enorme de coisas no mundo. joão sabia disso e, dentre as poucas certezas que nutria, sabia muito bem que era um bom observador. reparava na entonação que as pessoas usavam em algumas palavras — principalmente nessas polissílabas que custavam mais a acabar. decorava relatos sobre acontecimentos desimportantes e também extensas trajetórias de vida. mantinha-se atento às pequenas multidões que o cercava diariamente. disso tudo, o que o atraia era certamente a diversidade de coisas, caminhos e composições;
percebia, portanto, como um mesmo ponto do mundo construía-se a partir de uma série de desencontros, escolhas e trajetórias sinuosas. a partir de semelhanças e dessemelhanças, os outros o encontravam num determinado espaço e tempo e o mantinha útil à compreensão do mundo.
assim, desenvolveu uma estatística própria. percebeu que a cada 10 pessoas, 8,5 não apresentavam convicções. construíam o percurso de improviso, a partir de descobertas lentamente elaboradas, de desistências e tentativas insistentes. do restante, 1 desejava muito aquele ponto da vida e 0,5 — sim, esses os mais raros — apresentavam o que joão entendia como convicção — um tipo de desejo mais forte, sabe?
para ele e para o dicionário, convicção era algo como um desejo arraigado. quando ele pensava na força do substantivo, pensava consequentemente na intensidade do desejo de alguém por alguma coisa. quando encontrava alguém convicto, sempre se lembrava de um escritor famoso que em 1890, já nas franjas do século, aos 13 anos, decidiu, com a força da convicção, que queria ser escritor. o escritor famoso contava, do alto dos seus 48 anos, da antiga certeza de que ou seria escritor ou não seria nada. e foi, enfim, poeta de 30 romances, 52 ensaios e um sem número de notas autobiográficas.
joão que se abarrotava nas próprias incertezas, achava bonita as decisões firmes e seguia sendo um convicto contemplador do mundo. ele, um sujeito de poucas convicções, acreditava que só essa lhe cabia — o que àquela altura da sua vida já lhe parecia a coisa mais valiosa de sua trajetória.
por outro lado, lembrava-se também da carta de despedida de um filósofo francês, apaixonado e suicida. que diante do processo da escrita poética, se via antes, como ele mesmo disse, como um escrevedor. percebia na palavra muito mais um impulso do que convicção — parecia um desejo mais frouxo, mas, certamente, não menos criativo. e entendia, então, que o mundo e a trajetória das pessoas ao redor não eram só construídos com as certezas firmes, mas também com as certezas provisórias, dessas meio imprecisas.
existe mesmo uma extensão enorme de coisas no mundo. umas que seguem mais firmes, outras que vão aos tropeços, mas é desse jeito, joão, tranquilo, que se invade vida.

Marshall.

3 comentários:

  1. Gostei muito. A sonoridade poderia ser melhor, entretanto...

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  2. Texto bem escrito, criativo e fluido. Preciso dizer apenas para prestar atenção no uso de letras maiúsculas e minúsculas, por mais que acredito que tenha sido escrita dessa forma propositalmente. É uma boa crônica, parabéns.

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