Amanheceu o dia vinte e três de agosto. Mais um dia comum, mais um dia, mais um. Penúltimo início de semestre, faltando pouco para acabar a faculdade onde sempre sonhou estudar. Tudo corre bem. Normal. Ao entardecer, não sentiu fome, suas funções biológicas pareceram desregular naquele vinte e três de agosto. Deitou na cama e, até que a lua aparecesse para lembrá-la do tempo que corria, não sentiu vontade de levantar, de comer, de existir. Sentiu o frio da ansiedade fagocitando cada átomo do seu corpo, percorrendo todas suas entranhas até chegar à garganta, sufocando-a. A vida havia dado-lhe um golpe: todos seus planos de felicidade não renderam muito mais que uma gastrite nervosa e um pavor do futuro. Desejava que o nascer do sol iluminasse seus pensamentos e, magicamente, resolvesse todo seu caos. A cada hora passada a frustração ia tomando conta, tim-tim por tim-tim, de todo o seu ser.
Numa noite de chuva, depois de uma tarde ensolarada, voltando para casa, perdeu o último ônibus do dia. Para quem vem levando a existência como o fardo mais pesado a se carregar, todo acontecimento é um sinal do destino. Assim, enquanto caminhava pelas poças, tomara a decisão mais insegura e apavorante de toda sua vida: abraçou a imprevisibilidade e o desconhecido. Aquela tempestade fora de hora e o ônibus que havia partido obrigaram-na a buscar novas rotas e rumos.
Cedeu a si mesma. Trocou a faculdade quando já estava acabando. No auge de seus vinte e três anos, viu seus sonhos antes tão bem projetados se esvaírem dando lugar a uma confusão que aprendeu a abraçar. Hoje o medo ainda é como uma sombra, mas sua resiliência permite que abra um sorriso genuíno e confortante.
O outro também sou eu.
Eduardo Galeano
- Eu... Não gosto disso ai.
ResponderExcluir- Mesmo Mecânico? Achei que os tons de escuro faziam jus a sua sujeira. Essa graxa toda ai e tal.
- É difícil de tirar, essa graxa toda.
- Está com pena, Mecânico?
- Talvez.
- Pois eu não. É importante que se fale de morte. Morte de uma esperança. De um corpo. Morte de uma ideia. A morte é você, Mecânico, deixando de cuidar de um carro, e se tornando minha refeição. Morte é mudar, Mecânico.
"Não foi por isso que pediu pra eu escrever sua história?"
- Já te chamei, Corvo. Não gosto disso por outra coisa.
- O que seria?
- "Funções biológicas". O resto eu gosto. Isso... ficou torto.
- Destoou?
- Um cado.
- Mais alguma coisa, meu caro?
- Gosto do dia 23. Do ano 23. Podia ter falado mais.
- Olha... Até que isso é perspicaz, Mecânico. Você ainda tem futuro.
Deixo aqui um comentário similar ao que fiz na crônica da Renata Milena. Tive dificuldade em avaliar se Galeano está emprestando demais de suas próprias características à personagem. Não creio ser este o objetivo da atividade.
ResponderExcluir"Quando pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo".
Sugiro separar cronista da personagem retratada.