quinta-feira, 18 de novembro de 2021

A marcha fúnebre

 Foi assim que aquela moça se sentiu. Foi assim que aquele atendente se sentiu. Quando ela olhou para minhas roupas simples, meu jeito de falar, minhas notas, me desprezou. Quando ele olhou para as roupas simples do meu pai, do seu amigo e do seu chefe, o jeito deles de falar, como eles andavam, os desprezou. Quando viu quem eu era e do que eu era capaz, ela se arrependeu e imprimiu o papel da minha aprovação. Quando viu quem eles eram e do que eles eram capazes, ele se arrependeu e vendeu o carro à vista. 

Talvez essas situações tenham gerado um pouco de reflexão nessas pessoas. Uma das situações ocorreu há mais de 20 anos atrás, a outra não tem 2 anos sequer. É um problema atemporal. Julgar as pessoas pela forma como elas andam, se vestem e falam acontece há muitos séculos. Se voltarmos 521 anos, veremos isso no "descobrimento" do Brasil. Se olharmos na sociedade hoje, veremos isso em todas as esquinas de todas as ruas de todos os bairros. Porque é assim que funciona. 

Eu me senti desprezado, humilhado na frente da minha mãe por aquela fala. Meu pai e seus companheiros de trabalho se sentiram desprezados, humilhados entre si por aquela fala. É assim que muitas pessoas se sentem dia após dia. Eu me sinto envergonhado quando vejo esse tipo de ato ser praticado. Se é indígena, não merece viver com dignidade. Se é preto, de moto, à noite, eu perco meu celular. Se é mulher, tem que ser assediada por andar de short curto. Se é nordestino, tem que voltar pra lá, está roubando emprego das pessoas daqui. Se está vestindo roupas simples, não tem dinheiro suficiente para comprar um carro, vou até dar risada desse (literalmente) pobre coitado. Se fala gíria, criado em local de favela, não tem condição de estudar aqui.

500 anos se passam, 100 anos se passam, 20 anos se passam, 2 anos se passam, e hoje vivemos esse tipo de situação quase sempre. É a maior vergonha que passei, que meu pai passou, e que sinto quando vejo alguém sofrer com isso. Talvez essas 2 pessoas tenham deitado à noite, na cama, lembrado das situações e se tornado pessoas melhores. Talvez não. Mas se arrependimento matasse, a marcha fúnebre já teria sido ouvida.

Autor: Ajuste de Atitude

6 comentários:

  1. Olá Ajuste de Atitude! Tudo bem? Concordo com o seu texto, realmente esse jeito de olhar pros outros a sociedade não muda e eu me incluo nisso porque ainda cometo meus erros enquanto uma pessoa social. Mas é claro que de um jeito bem distante do que o relatado em seu texto, aliás, belo texto! Gostei da fluidez. Porém, eu gostaria de fazer uma ressalva, me parece haver incômodo em ser visto como uma pessoa menos privilegiada, entendo que o incômodo é muito maior por ser julgado e receber tratamento diferente pelo preconceito do outro, mas é um ponto que eu percebi no seu texto. Aparentar ou não aparentar não te define em nada, nós sabemos disso! <3

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  2. E peço desculpas se eu tiver tido uma interpretação equivocada.

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  3. Que texto forte. Me fez refletir sobre o quanto nós ainda temos que evoluir como sociedade, e sobre como nossas ações machucam os outros. É difícil, muito difícil.

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  4. Que triste, Ajuste de atitude. Você escreveu um belo texto que retrata muito sobre os preconceitos da sociedade e sobre o quanto ainda as pessoas são intolerantes. Prefiro acreditar que essas pessoas que humilharam você, sua família e amigos tenham repensado suas atitudes e que não pratiquem com mais ninguém... podemos ter pelo menos esperança nisso.

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  5. Me identifiquei bastante com o seu texto. Diversas vezes já fui menosprezada. Uma vez na pizzaria, outra na perfumaria, em uma entrevista, entre outros. Foi muito importante você expressar, no seu texto, sua indignação com essa situação. Ademias, foi significativo citar exemplos de situações que "devem" ocorrer ao ver determinados tipos de pessoas.

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  6. Que texto forte, Ajuste. E muito muito bem escrito. É muito difícil mesmo, como disse a rainha.

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