quinta-feira, 25 de novembro de 2021

A rotina de Walcyr: o cidadão de bem

 Sete e quinze. Este é o horário que o Senhor Walcyr acordava para mais um dia de

trabalho. Abria as cortinas e deixava o sol entrar. Rotineiramente, ele tirava 15 minutos para

apreciar o lindo dia. Faça sol ou faça chuva, todo dia era um lindo dia para o Senhor Walcyr.

Ele não se preocupava de chegar atrasado na empresa, afinal a empresa era dele. Acordava

sozinho, não porque ele era sozinho, mas porque sua esposa sempre acordava um pouco antes

para ir à academia. O horário das sete era o único que a agradava. Achava que depois das oito

ficava muito cheio e à tarde ela já não tinha mais disposição para malhar. Por isso, sua rotina

tinha que ser sempre a mesma, para não deixar de malhar e, consequentemente, não

desagradar o Senhor Walcyr. Afinal, não era atoa que ele pagava a melhor academia da cidade

para ela, Joana - sua esposa linda, esbelta e 15 anos mais jovem. O Senhor Walcyr não era

velho. Para um cinquentão, ele estava realmente bem “inteiro”. Não por menos Walcyr tirava

suspiros nas ruas de São Paulo enquanto caminhava com seu blazer alongado da Calvin Klein e

sua barba grisalha por fazer. Tendo terminado de apreciar o dia. O Senhor Walcyr sempre

tomava um banho rápido, se arrumava e descia as escadas. No pé da escada estava a cozinha,

onde, agora, sete e meia, entrava Dona Zuleide que, com uma aparência sempre ansiosa, já

abria a porta se desculpando pelo atraso. O horário de Dona Zuleide era às sete horas. Todo

dia ela vinha com a mesma desculpa “um dos ônibus atrasou, Senhor Walcyr. Sinto muito pelo

atraso”. Walcyr nem respondia, apenas passava direto revirando os olhos. Ele não entendia

porque Dona Zuleide não podia ter uma rotina. Achava que era tudo “desculpinha”, afinal ele e

sua esposa sempre seguiram suas rotinas exemplarmente, então por que ela, com salário

mínimo em dia e vale transporte incluso, também não conseguia? “Ah... desculpinha”.

Passando pela cozinha, ele encontrava Seu Antônio, o jardineiro. “Bom dia, Seu Antônio” ele

gritava de longe. Seu Antônio, já bem senhor aos seus 78 anos, respondia com sua voz trêmula

“Muito bom dia, meu patrão”. Então, Walcyr fingia um sorriso até fechar o portão. A verdade é

que esse trajeto do jardim até o portão o estressava. Ele não aguentava olhar aquelas roupas

sujas e rasgadas do Seu Antônio. Achava ele um desleixado. Para Walcyr, o Seu Antônio podia

muito bem pagar algumas roupas de bazar com a sua diária de 100 reais, ou, pelo menos,

tomar um banho, pois Seu Antônio fedia. Por isso, o Senhor Walcyr apenas o cumprimentava

de longe. Em 15 anos de trabalho no jardim de Walcyr, Seu Antônio nunca recebeu um aperto

de mão. Em seguida, o Senhor Walcyr, após chegar na sua Range Rover, levava 15 minutos até

a empresa. Ainda assim, ficava nervoso a cada sinal de trânsito, pois sempre vinha um

morador de rua pedir uma esmola. Quando vinha alguma mãe com criança no colo então, o

Senhor Walcyr ficava furioso. “Como pode uma mãe usar o filho por dinheiro assim? Essa

criança devia estar na escola”, pensava ele. O senhor Walcyr nunca dava dinheiro para adultos,

e ainda julgava quem dava. Para ele, isso apenas incentiva essas pessoas a não procurarem um

trabalho. O Senhor Walcyr apenas dava dinheiro quando uma criança pedia, para que ela

pudesse comprar algum brinquedo ou algum doce, já que a sua mãe “desnaturada” com

certeza não a daria dinheiro. Porém naquele dia, nenhum pedido de esmola aconteceu. E,

ainda no carro, Walcyr estranhava o trânsito lento. Geralmente ele não pegava trânsito. Assim,

olhou no retrovisor e, realmente, viu que estava tudo parado. Ele, então sentiu que algo estava

estranho. Então, como aquele trânsito parecia que não andaria tão cedo, Walcyr saiu do carro

e foi andando em direção ao amontoado de pessoas que se encontrava mais à frente.

Chegando no centro da confusão, Walcyr entendeu o motivo do caos no trânsito: uma cobra

em plena rodovia. Os rostos em volta dele mostravam que ninguém ali sabia o que fazer. Foi aí

que Walcyr pensou “É um sinal eu estar aqui”. Pois, para a sorte de todos ali, Walcyr é

experiente com cobras. Em muitas de suas viagens mundo a fora, ele já pegou cobras, as


domou e até acompanhou uma extração de veneno em um serpentário. Na hora, ele soube

que era uma cascavel venenosa e, como um verdadeiro Superman, Walcyr gritou “Afastem-se!

É uma cobra venenosa”. Os suspiros assustados vieram de todos os lados. Então, Walcyr

continuou “Mas não temam, eu vou tirá-la daqui”. Mesmo sabendo que o veneno dela agia no

sistema nervoso central e poderia ser letal, ele, como o bom homem que era, não poderia

deixar aqueles cidadãos que apenas queriam trabalhar na mão. Neste momento, Walcyr pegou

dois gravetos de madeira que se encontravam caídos perto de uma árvore e a imobilizou com

um graveto no meio do corpo e outro perto da cabeça para segurar sua mandíbula. Em

seguida, com seu corpo e mandíbula imobilizados, agora, pelas mãos de Walcyr, deixando a

cascavel impossibilitada de atacá-lo, o Superman grisalho a jogou numa lata de lixo funda pega

por um dos ajudantes do super herói que se encontravam no local e fechou a tampa

rapidamente antes que ela se virasse e o atacasse. O Senhor Walcyr estava com a adrenalina

no ápice. Nunca havia se sentido tão tenso, mas ao mesmo tempo, sentia uma sensação muito

gratificante, como se ele fosse realmente um super-herói. Claramente, as palmas e assovios de

todos que estavam ali engrandeceram essa sensação. Walcyr havia feito a caridade da semana.

Da semana não, do ano. Quando sentiu o flash no seu rosto, ele entendeu. “Eu sou o cara”.

“Eu salvei essas pessoas e a minha boa ação estará estampada no jornal”. Walcyr em nenhum

momento pensou que, enquanto bancava o Superman, diversos trabalhadores ficaram mais de

duas horas no trânsito. Que diversos patrões demitiriam aqueles que se atrasaram para o

trabalho, como ele pensou em fazer com a Dona Zuleide diversas vezes, enquanto ele sorria

para as fotos. Walcyr não pensou em nenhum momento que se dona Zuleide chegasse duas

horas atrasada para o trabalho ela teria o salário descontado com a premissa de que era

“desculpinha”. Walcyr vai chegar no trabalho pelo menos duas horas atrasado e ninguém irá

falar nada, apenas Walcyr, que irá contar do seu ato heroico e, com certeza, receberá a

segunda salva de palmas do dia. Walcyr não pensou em nada disso, porque Walcyr não pensa

em ninguém, apenas em si mesmo. Walcyr não é herói. Walcyr é apenas mais um hipócrita

narcisista que faz atos heroicos para se sentir “o cara”. E você? Quantos Walcyr’s você

conhece?


Sininho no País das maravilhas

3 comentários:

  1. Walcyr é um mero bolsominion. Gostei muito do seu texto! Parabéns pela dedicação!

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  2. Sensacional, sininho. Admiro muito sua criatividade e você abordou muito bem o tema. Eu conheço vários Walcyr´s. Parabéns pela crônica!! <3

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  3. Eu amei o estilo que você adotou pra essa crônica! A leitura fluiu de uma forma tão tranquila que parecia que eu estava lendo um pedaço de um livro como os da minha estante, e pude ver sua crítica em um texto escrito com leveza e ao mesmo tempo indignação pela quantidade de Walcyr's que vemos por aí.

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