quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Síndrome do Peter Pan

 Era uma mania dela. Ao bater sete horas no relógio, esse é o único pensamento que

surge: protagonizar a cena de uma novela ou explorar de Marte à Júpiter? Este momento

sempre foi o que ela mais gostou: deitar a cabeça no travesseiro e ir para um lugar onde

o homem jamais pisou. Adentrar em sonhos psicodélicos. Fugir sem sair de casa.

Escapar da realidade que a massacrava fora daquele mundo que ela criava. Mas antes,

desenhar para se sentir bem. É como se elaborar cenas de uma realidade alternativa

fosse a única forma de fugir dos males que a vida tem. E entre seus sonhos e seus

rabiscos, ela vive da forma menos clichê. Apenas nos seus desenhos, poderíamos ver o

que ela vê. E da arte mais radiante a mais sombria, ainda assim, ninguém a entenderia.

Porque ela não é desse mundo, ela é de um mundo de fantasias. Visitando novos

lugares. Viajando na própria mente. Todos os dias, reiteradamente. E é assim: do seu

jeito curioso e iluminado. Uma figura singular de brilho vasto. Se o mundo a enxergasse

como ela o enxerga, talvez esses dois finalmente fariam uma trégua. Mas enquanto não

acontece, mais uma vez, no Mundo das Maravilhas, ela adormece. E com seu coração

valente que acabara de derrotar a madrasta perversa, lá estava ela. Na manhã seguinte,

era a Stella, e não a Cinderela. De pé para mais um dia. Pronta parar combater gigantes

do mal, agora muito piores do que os dos seus sonhos, pois estes eram os do mundo

real.

- Não pode ser, adormeci com um príncipe num castelo e acordei na Rua Clarimundo

de Melo?

- Ei, tente me ouvir, o conto de fadas continua apenas depois que dormir. Ao despertar,

seu mundo é este daqui. Não pode chorar, não pode esquecer. Você já é adulta, Stella.

Não importa se não quer crescer.

- Pare de mentir! Pare de me confundir! Eu realmente preciso ir. Se o dragão atacar o

castelo, sem mim, irão perder o duelo!

- Não, Stella. Não pegue sua espada. Pegue sua pasta. Desça da carruagem. O metrô a

espera para mais uma viagem. Nesta, não possui um dragão ou varinhas de condão, mas

a batalha será tão árdua quanto a do rei Arthur, caso sirva de consolação. O seu príncipe

está na cozinha, fazendo o almoço! Guarde essas ideias mirabolantes para brincar com

seus filhos ao chegar do serviço.

“Toc-toc”.

- Meu príncipe? Este homem não me ama e ainda está desempregado, como quer que

eu o chame de príncipe encantado?

Stella mesmo se surpreendeu com o que disse. Parece que agora ela entendeu o

mundo em que vive. E foi assim que ela se deu conta: nesta batalha são todos contra

todos e cada um por si. Porém, Stella não compreendia:

- Mas... sem fadas madrinhas ou príncipe encantado, qual é a graça de existir?

É... parece que Stella percebeu que viver neste mundo não tem nada de engraçado. Lutar

para encarar o mundo real já virou rotina antes do trabalho.

- Espera... você está narrando meus pensamentos? Estou num filme? Como pode saber

dos meus sentimentos? Então, está brincando comigo. Pensei que fosse meu amigo!

- Não, Stella. Você entendeu tudo errado. Eu devo ter me atrapalhado, mas estou aqui

para ajudar. Não cabe a mim falar, mas não se preocupe, logo mais a terapeuta vai lhe

explicar. Este mundo pode ser difícil de se viver às vezes. Afinal, são tantos afazeres.

Trabalhar, ter que pagar a conta, lidar com a família; eu sei que isso te amedronta. Mas

se a vida real não lhe dá motivos para que se apaixone, é normal criar válvulas de

escape para que não desmorone. Não faça essa cara, Stella, eu estou contigo. Não

importa se eles não me veem, você ainda tem um amigo. Este pode não ser um longa-

metragem onde, no fim, você se casa com o príncipe que da torre te resgatou. Mas não

se preocupe com o final, Stella. Este filme é um curta. Quando você menos perceber, ele

já acabou. Portanto, agora, eu me despeço, pois seu dia neste mundo mal começou. Não

vá se atrasar para o trabalho, logo menos você estará num castelo regado de vibrantes

flores-de-maio.

“Toc-toc. Toc-toc.”

- Então você vai me deixar?

- Stella, depois desta pílula, nem mesmo desta conversa você lembrará. Mas está tudo

bem, pois ao dormir, eu volto, assim como os lindos sonhos que sempre vêm. Então,

agora, vou embora. Seu filho anda batendo na porta e você nem escutou. Eu continuo ao

anoitecer, pequena grande sonhadora. Abraços, o narrador de sonhos que a sua mente

criou.


Sininho no País das maravilhas 

7 comentários:

  1. Uauuu, que texto maravilhoso! Eu super leria mais sobre a Stella e sobre sua fuga da realidade. Não posso julgá-la, esse mundo é caótico demais e a gente se cansa mesmo.

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  2. Nossa! Que texto maravilhoso. Eu mergulhei na história e me identifiquei bastante. Todos nós vivemos na terra do nunca, até perceber que, na verdade, vivemos na vida real. Esse choque é realmente bem triste. Um dia somos jovens, adolescentes que não temem a nada. No outro, não saímos pois o mal pode está a espreita. Seu texto está sensacional! Parabéns!

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  3. Que texto incrível, sininho. Seu talento para escrita é notável e sua criatividade também,parabéns!!

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  4. Ótimo texto, Sininho! Muito criativo e original!

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  5. Que texto incrívellll! Tô apaixonada pela sua escrita!! Parabéns!

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  6. Eu simplesmente AMO esse texto. Imagino que escrever também seja uma de suas válvulas de escape, e devo dizer que você faz isso muito bem!

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