quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Dores

 Gostaria de poder ligar para ela agora. Confidenciaria os meus maiores e mais supérfluos segredos. Provavelmente ela riria de mim, não por escárnio, mas porque ela sempre achou graça da forma hiperbólica a qual eu me expresso.

Contaria que passei na faculdade, era o que ela mais queria que acontecesse, pois, ainda que indiretamente, ela lutou por isso. “Jornalista? Quer dizer que a minha netinha aparecerá na televisão, é?” É o que ela diria, com muito orgulho. Sem que eu soubesse, ela pediria à minha mãe que me entendesse e não tentasse me obrigar a ser quem eu não sou. Mamãe me ama e confia em mim, mas ela peca pelo medo do que o mundo pode fazer comigo, o que o mundo pode me tornar. Contudo, se tinha algo em que ela confiava, era na boa criação que vocês me deram, nisso não era possível duvidar.

Gostaria que ela fosse ao meu casamento e aprovasse minha escolha de companheiro para vida. Ela nunca chegou a conhecer meus fugazes amores, gostaria que ela tivesse conhecido, ao menos, o meu primeiro amor, acredito que ela simpatizaria com ele. Bom, ao menos até descobrir o que ele fez comigo. Ele abriu um buraco tão grande em meu peito que, até nos dias atuais, vejo-me incapaz de amar novamente, de me permitir ser vulnerável. Se eu tivesse sido mais honesta e aberta em relação aos meus sentimentos, ela veria que somos mais parecidas do que um dia qualquer um pôde jamais imaginar. Se eu me permitisse, no dia da cerimônia eu andaria em direção ao altar, sempre nervosa, meu vício pelo controle não me garante nenhum sossego, mas eu ficaria anestesiada ao vê-la sorrir com a minha chegada. Com o seu vestido turquesa e seus dentes brilhantes eu seria ofuscada em questão de segundos, que audácia a dela ser mais bonita do que a noiva. 

Quando eu estivesse grávida do meu primeiro bebê, ela estaria lá. Diria que está tudo bem e que cuidaria de mim. Se tinha alguém no mundo que sabia cuidar dos outros era aquela mulher. Sendo menina, eu a nomearia de Maria Clara, um simples tributo em homenagem à Maria das Dores, minha mãe-vó. Dizem que Marias são sempre fortes e, se minha futura pequena herdar não somente o nome, ela também será. Outras pessoas alegam que “Maria” significa amar, concluo que elas estão certas.

Confesso que tento escrever prosas heroicas, romances trágicos e suspenses aterrorizantes, porém, sou incompetente na arte de não escrever sobre ela, as ideias não conseguem se transfigurar em palavras e o que me resta é escrever. Escrevo sobre a perda e como minha infância foi mais colorida ao lado dela. Agora tudo é cinza.

Acho que tudo sempre terá um reflexo da pessoa mais doce que já conheci. Talvez, assim, ela nunca de fato terá morrido, pois permanecerá sempre viva, queimando em mim.


Cida da Rocha

6 comentários:

  1. Lindo demais o seu texto!! Eu senti exatamente o que você sentiu pelas palavras que usou.

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  2. eu tô sem palavras, sério, que texto impactante... senti tantas coisas que nem sei explicar

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  3. Cida, que texto lindo! Sinto muito pela sua perda! A forma como você retrata Maria me faz acreditar que Marias realmente são seres especiais. Obrigada por compartilhar o seu amor e o amor de Maria conosco! Tenho certeza que ela é eterna na memória de todos que conviveram com ela! Beijosss <3

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  4. Seu texto me deixo sem palavras. gostei muito! Parabéns pelo empenho

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  5. Que texto mais lindo! Que suas memórias coloridas permitam sempre que um pouquinho de suas cores preencham as partes cinzas de seus momentos futuros <3

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  6. Que texto bom, Cida, mais uma vez tenho que elogiar sua forma de escrever. Parabéns!

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