“Observa, Paulo” disse sua amiga, Clara, em um devaneio de bar, “O mundo é feito de oposições, antíteses. Observa.”
Mal sabia ela que Paulo já reparara nisso há tempos. Desde quando tinha dois anos e esticou a mão esquerda para pegar o brinquedo, recebendo um tapa do pai:
“Usa a mão direita, menino” ele disse.
Aquilo simplesmente não fazia nenhum sentido para ele. Não querem que os canhotos comam? Pois todos os abridores de lata e saca rolhas eram para mão direita. Não querem que os canhotos façam arte? Já que tesouras mal encaixam em suas mãos. Não querem que os canhotos possam ir e vir como os destros? Porque quase todas as portas abrem para o lado direito.
Com o passar do tempo, conformou-se que era minoria e o mundo simplesmente não era feito para canhotos. Mas, a partir disso, Paulo tornou-se viciado em reparar oposições no mundo. Talvez porque não tivesse nada melhor para fazer, talvez porque a ditadura dos destros mexesse mais com ele do que com os outros canhotos.
Aos 11 anos observava as meninas e os meninos de sua sala na escola. As garotas estavam conhecendo a menstruação. O sangue vermelho manchava suas roupas e a dor da cólica martelava seus corpos. Já os meninos, cada vez mais experientes com a masturbação, tinham orgasmos e compartilhavam com seus amigos sobre osprazeres da vida.
Aos 26, quando começou a trabalhar em uma delegacia, essas oposições escancaravam-se na sua cara. As vítimas ficavam nas salas do lado esquerdo, os denunciados do lado direito.
Paulo nunca se esquecera do pior caso que já teve que investigar. Lembrava-se perfeitamente quando uma senhora, negra, de quase 60 anos chegara, aos berros, falando que um policial havia assassinado seu filho, em um conflito de favela. Suas roupas vermelhas de sangue contrastavam com o azul da farda do policial. Seus olhos, desesperados e molhados, em nada se assemelhavam com o cenho franzido do possível assassino. A dor da perda de um filho seria algo que nem Paulo, nem o policial conseguiriam imaginar.
Pouca coisa Paulo podia fazer para mudar as oposições da vida. Sofria com elas, sofria pelos oprimidos, mas suas ações não poderiam alterar o mundo.
Entretanto, toda vez que chegava ao trabalho de manhã, segurando sua garrafa de café, deparava-se com um dilema: primeiro atenderia à vítima ou ao denunciado? E todos os dias, com uma consciência mais tranquila, Paulo virava-se a esquerda.
Helena Seixas
Caprichou nas metáforas, foi extremamente criativo mesmo. Ser canhoto em um mundo de destros é muito difícil. No que se refere às estrelas, não sei se estou certo, mas acho que você alcançou todas.
ResponderExcluirÉ um texto muito bem trabalhado nas metáforas. Gostei! Dentre as pontas da estrela, creio que esse texto é perene, exerce a cidadania, rompe com o lead, proporciona amplas visões da sociedade e ultrapassa os limites do cotidiano. Parabéns!
ResponderExcluirMuito bom, atendeu ao tema e ao título. Usou bastante metáforas e a que mais me chamou atenção foi o sangue vermelho da vítima contrastando com a farda azul do policial, que deixou bem evidente a comparação com os atuais partidos em voga no nosso cenário político. Além disso, seu texto exerce cidadania e aborda uma discussão da atualidade, o drama humano vivido diariamente pela sociedade > polícia contra a população marginal. Quanto às pontas da estrela, notei rompimento com o LEAD e visão totalmente ampla da realidade. Parabéns.
ResponderExcluirPerfeito uso das figuras de linguagens. É incrível o poder que uma crônica tem de abordar um assunto sem falar dele diretamente. As metáforas são, sem dúvidas, o que mais chama a atenção para a sua criatividade. Também percebo o alcance de todas as pontas da estrela, principalmente o pleno exercício da cidadania e a profundidade. Parabéns pelo texto!
ResponderExcluirTexto maravilhoso, onde os aspectos linguísticos e antropológicos se misturam de forma perfeita. Gostei muito da metáfora sobre ser canhoto em um mundo de destros, pois esse é exatamente o sentimento de ser de esquerda em um mundo que pertence à direita.
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