segunda-feira, 13 de junho de 2016

Ego


Era uma tarde ensolarada no Rio de Janeiro e os amigos se juntaram para um churrasco. Em meio a bebidas e risadas, o casal trocava beijos e carícias. Ao final da reunião, ele e ela ficaram sozinhos. Sozinhos e animados. Animados e calorosos. Calorosos e apaixonados. Apaixonados e sozinhos. Entre beijos quentes e euforia, ela disse não. Ele insistiu. Ela disse não. Ele parou.

Era uma noite calma e o casal estava deitado no sofá da sala vendo algum filme de comédia que passava na televisão. A sós, eles começaram a trocar calorosos beijos e o caminho para o quarto nunca parecera tão longo para ele e tão curto para ela. Não, ela não queria sair da sala. Não entendia porque sempre havia a necessidade de terminar no quarto, ambos seminus. Ela disse não. Ele insistiu. Ela disse não. Ele se irritou. Ela se sentiu mal. Eles brigaram.

Era uma tarde fria no Rio de Janeiro e o casal se reencontrara após a última briga. Todas eram quase sempre pelo mesmo motivo: ele queria, ela não. Mas o assunto não morria com as discussões, ele se fazia presente em quase todas as conversas sempre a deixando desconfortável. Por que não podiam fazer? Por que ela não podia ter vontade de fazer? Por que ela estava enrolando tanto? Por que ela não podia ver o lado desesperado de um adolescente de 16 anos querendo ter sua primeira transa para se vangloriar para os amigos? Por que elaera assim?

Era uma tarde de carnaval e todos os amigos combinaram de ir a um bloco de rua. Mas o casal nunca foi muito de calor, suor, samba. Quer dizer, ele não gostava dessas coisas e ela o acompanhou em casa. Afinal, para que sair do quarto se há Netflix no computador e ar condicionado na parede? Mas a intenção não era ficar vendo aquela série atrasada. Óbvio que não. Casal, carnaval, a sós, no quarto, preservativos na gaveta... Ela disse não. Ele insistiu. Ela disse não. Ele insistiu. Ela disse não. Ele reclamou, brigou, irritou-se, insistiu. É carnaval, todos os casais fazem isso. Por que ela não podia cooperar? Por que ela queria continuar virgem? Por que ela estava agindo como uma criança? Ela desistiu. Ele entendeu como um sim. 

Era uma tarde chuvosa de fevereiro e ela não queria sair de casa. Inventou alguma doença para que ninguém a convencesse de sair nem tentassem ir atrás dela. Seu útero doía, seu coração doía. Mas ela tinha que fazer isso, não é? Quer dizer, ela sempre enrolava enquanto todos na idade dela já estavam transando. Ele não aguentaria por muito mais tempo sem perder a virgindade. Ela tinha que ter o desejo. Ela tinha que satisfazê-lo ou o perderia.

Era uma noite fria e ela se agarrava ao seu cobertor como se ele fosse o que a impedia de cair naquele precipício. Dor. Doía. Dor. Doída dor. Era só isso que sentia. E, sempre que tentava gritar, sua voz se perdia pelo vácuo. Como ela não sentia prazer? Ele não entendia. Estava preocupado demais tentando ter seu próprio orgasmo para perceber que havia algo de errado. Seu ego o deixava olhá-la, mas não o permitia vê-la.

Era uma tarde ensolarada, mas ela só via nuvens negras pela janela. Não queria sair de casa, não queria ninguém em sua casa. Queria ficar sozinha, longe do mundo real, longe de imposições, longe dele. Só queria deitar, dormir, fechar os olhos, comer... Só queria viver sem dor no útero, nas pernas, na cabeça, no coração, na alma. Só queria viver longe do ego dele. Só queria viver.

Amelie Poulain



6 comentários:

  1. Fiquei com o coração apertado. Dói pensar no quão comum é essa situação, no quanto todas as mulheres estão sujeitas a passar por isso, e sem nem perceberem onde está a origem de tudo. Estamos em um momento onde se discute muito machismo e cultura do estupro, e ainda bem, porque textos como o seu tem muito a acrescentar a essa discussão.
    Arrisco dizer que seu texto contempla todas as pontas da estrela, e o machismo é um dos aspectos antropológicos que se destaca.

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  2. Concordo com tudo o que a Lucy falou, e é realmente uma pena que muitas garotas (não, mulheres) submetam-se a isso por insistência de garotos. Na verdade isso é meio irônico, se levarmos em conta que a sociedade ensina as garotas a valorizarem sua virgindade e "não dar pra qualquer um", enquanto ao mesmo tempo dá sinal verde aos garotos, resultando num paradoxo frustrante.

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    1. Acredito que esse problema não se limite apenas a garotas, Cora. Existem muitas mulheres - casadas, principalmente - que fazem sexo sem a menor vontade - e as vezes até sem consentimento - com seus maridos apenas para satisfazê-los e/ou por medo de ser traída se não fizer. É uma questão que aborda todas as idades, infelizmente.

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  3. Concordo com o que já foi citado. Muito bom o texto e, de fato, é uma realidade bem triste. Existe um lado psicológico, mas principalmente - se não me engano - antropológico, já que o machismo é um tema que afeta a todos em vários níveis. Acredito também que você atingiu todas as estrelas!

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  4. Como dito anteriormente, percebo a questão antropológica tratando do machismo e do estupro como forma de condenar esse comportamento, que se manifesta sob diferentes formas na sociedade. Achei a temática muito boa, pois propõe uma reflexão importante. Quanto à estrela de sete pontas, o texto atende a muitos quesitos: perenidade, visão ampla da realidade, espírito cívico, rompimento com o lead, entre outros. Parabéns pelo trabalho!

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  5. Seu texto é realmente muito bom! A abordagem do sexo pelo lado negativo foi muito inteligente. Assim como a Lucy, eu também fiquei com o coração apertado ao ler e saber que isso é mais normal do que se pensa. Existe o fator antropológico do machismo e o psicológico da pressão para satisfazer o parceiro. Você também exerceu seu papel cívico e foi perene, já que a cultura do estupro ainda vai ser debatida por muito tempo. Parabéns pelo texto!

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