segunda-feira, 27 de junho de 2016

Estava tudo de pernas ao ar. 
Os ladrões prendiam a polícia, os inocentes eram crucificados, os sábios ignorados e os ignorantes ganhavam voz. A confusão era tal, e o poder dos injustos crescia tão desenfreadamente, que até mesmo pedalar virava motivo para depor um indivíduo, se isso conviesse ao algoz.
A vida estava sendo regida segundo interesses pessoais, inventando-se a figura de inimigo da lei àquele que fosse o seu inimigo pessoal.
E não sei se é muito curioso ou se eu que não fui capaz de interpretar, mas para cada charlatão, havia sempre uma multidão negativamente afetada que o defendia pessoalmente, como se confiasse no outro a moral (também torpe) de si próprio. E se ousasse cuspir suas palavras de protesto, era morte social na certa! Ia acabar sendo manchado do vermelho sangue que te faz um alvo, porque sangrar aqui era considerado doença.
Tive que assistir, calada, às tragédias que me rodeavam. Cada dia pior. A miséria à solta, a perversidade reinando, a fome matando a cada esquina. O ódio sendo justificado, o beijo sendo apunhalado, a ética sendo abalada, a vida sendo mortificada. A moeda subia e, quanto mais difícil fosse alcançá-la, mais status e poder ela ganhava. Mais poderosa que homens, que, sem as ter, sucumbiam à morte e ao esquecimento. No caso de uma fatalidade mais escancarada no meio do caminho, desculpavam-se pela metade. Se uma Juma morresse e todo um estado tivesse que pagar por um evento que não queria, por exemplo, seria dito que havia sido um problema, mas que ninguém precisaria se preocupar pois o tal evento ia acontecer mesmo assim. Como se a nossa preocupação fosse um jogo.
Era demais para mim.
Minha visão ia ficando turva, meus pensamentos desconexos, já não aguentava mais tanta imundice. As formas começaram a se misturar e dançar na minha frente, então acordei. Senti uma dor de cabeça terrível e lembrei da queda que tinha sofrido no dia anterior. Relaxei. Foi só o golpe.
Pandora.

3 comentários:

  1. Achei interessante e profundo. Apesar de mencionar casos extremamente atuais, seu texto tem passagens extremamente perenes. Acho também que você proporcionou uma ampla visão da realidade, exerceu a cidadania (destaque para esse) e rompeu com o Lead.

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  2. Acredito que seja fundamental destacar como seu texto foi bem escrito. A escolha das palavras e expressões foram muito bem feitas. Apesar de ter estabelecido uma viés mais formal à obra, mesmo assim consegui sentir intimidade com a narradora. Observei que houve uma apuração jornalística presente no texto e, além disso, que você se preocupou em exercer o caráter cívico ao levantar questões como a ética e a moralidade.

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  3. A linguagem utilizada deu uma formalidade maior ao texto, com certeza. Porém não o tornou cansativo, nem complicado de ler. Conseguiu mexer comigo e me deixar com um peso nas costas conforme ia chegando ao fim. Quanto à estrela, as pontas mais bem exploradas foram a visão ampla da sociedade e o exercício de cidadania. Parabéns!

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