domingo, 5 de junho de 2016

Mamãe, sou comunista!

1968, o ano que nunca terminou. Meu pai estava no trabalho – passava a maior parte do dia fora de casa. Meu irmão mais velho, cujo nome haviam-lhe arrancado após sua prisão pelo regime militar de Castelo Branco, estaria, naquele momento, muito provavelmente sendo torturado em uma sala escura e úmida do DOI-CODI, tendo extorquidas dele informações que supostamente levariam o exército ao líder do movimento esquerdista do qual ele participava. Sua identidade se perdera a partir do momento que a Mãe passou a se referir a ele como “Filho do Lênin”. Um xingamento fortíssimo na época.

Eu? Ah, eu era aquela menina levada, no auge dos meus 6 anos de idade. Nos tempos onde o rosa era para garotas e garotos eram aqueles que tinham a cobrinha no meio das pernas, a pequena Simone, figuraça, era a ovelha negra da família – ou melhor, do bairro. Os meninos da rua me temiam, os de rua me respeitavam e as meninas olhavam para mim como se eu fosse uma criatura bizonha. E eu era.

O que fazia da jovem Simone um caso à parte era o fato de eu sempre agir em desacordo com os padrões comportamentais impostos pela sociedade ao sexo feminino; você sabe, todo aquele negócio de usar saia abaixo do joelho, cruzar as pernas ao sentar, brincar de boneca e coisas mais. Meu negócio era jogar aquela bola depois da escola com os garotos. Meu negócio era andar de shorts e camisa regata. Meu negócio era fazer careta para a vizinha careta. Meu negócio era ser tudo o que a minha mãe rezava todos os dias para que eu não fosse – o que, a propósito, me lembra de uma história, a qual não me canso de contar.

Era noite, e a tempestade do lado de fora inundara a rua. Entre o uivar dos ventos e o estrondo dos trovões, ouviam-se gritos de alegria. Ao olhar pela janela, avistei os garotos – tanto os de rua quanto os da rua – brincando na chuva como a tomar uma ducha depois do rotineiro futebol da tarde, todos eles de roupa de baixo, sem a menor vergonha. Eu, toda animada, disparei em direção à porta da frente, só para ter minha euforia estraçalhada pela Mãe, que gritou por mim antes de eu sequer pôr o pé para fora. “Onde você pensa que vai!?” - disse ela, já com a chinela na mão. Suas feições já diziam tudo: eu estava confinada a uma noite de chuva presa em casa enquanto meus amigos se esbanjavam lá fora, e ai de mim se eu ousasse desobedecer à ordem suprema de Mãe.

No entanto, eu estava obstinada a sair. Sentia-me audaciosa, irrequieta, adrenalina a mil. E foi no instante entre o vislumbre da chinela voando para cima de mim e a gelidez das gotas de chuva tocando minha pele que eu fechei a porta de casa e, finalmente, vi-me livre para ser feliz. Eu, toda atabalhoada, me livrava daquela camisola rosa ridícula ao passo que corria de encontro à grande poça que se formara no quintal da casa ao lado. Dali para frente, foi tudo alegria. Ou nem tudo.

Avancemos alguns minutos na história. A chuva torrencial se transformara em garoa, os meninos da rua já se encontravam sãos e secos em suas casas, e eu? Ah, eu levava uma, duas, três, infinitas palmadas na bunda. Com minhas nádegasvermelhas, ardendo de dor e a Mãe com um olhar austero, encarando-me de maneira intimidante, eu caminhava, vagarosamente, até o meu quarto. Minhas pernas bambeavam e tinha a impressão de que uma lágrima escorria pela minha bochecha esquerda. Foi quando, com uma voz embargada, minha mãe perguntou - “Por que você não pode ser como as outras meninas, Simone?”.

Naquele momento, uma enxurrada de memórias do meu irmão, aquele que sempre cuidara de mim, aquele que sempre batalhara por seus sonhos e por seus ideais, ressurgiuna minha mente. Não havia mais jeito, eu tinha que confessar.

Me diz, meu deus, por que você não pode ser direita?” - Ela insistiu.

Desculpa, mamãe. Sou comunista.” - Respondi. E segui em frente.



Por Simone do Saxofone

6 comentários:

  1. Que ótimo texto!!! E o final? Parabéns! :) Creio que além de romper com o lead, você potencializou os recursos jornalísticos, com uma preocupação com a linguagem e os detalhes, e apresentou uma visão ampla da realidade.

    ResponderExcluir
  2. Ótimo texto Simone, esse lance de diferença ideológica na família é dureza...acho que você além de garantir perenidade e cidadania ao texto, mostrou uma visão ampla da realidade.

    ResponderExcluir
  3. Um dos meus preferidos. Acho que você escreveu muito bem e conseguiu potencializar os recursos jornalísticos, ter uma visão ampla da realidade, tratar da questão cívica e tudo isso de maneira muito profunda. Parabéns!

    ResponderExcluir
  4. Eu adorei esse texto! Está muito bem escrito e é bem criativo. Creio que da estrela de sete pontas, você conseguiu potencializar os recursos do jornalismo, ter uma visão ampla da realidade, exercer a cidadania e evitar os definidores primários. Parabéns!

    ResponderExcluir
  5. Excelente!! Muito boa a forma como você abordou a história da menina que buscou o seu prazer, independente das regras sociais que lhe eram impostas, ou seja, não deixou a impulsão do prazer ser impedida pelo princípio da realidade. Quanto às pontas da estrela, pude notar o rompimento com o LEAD e limites do cotidiano, exercício de cidadania e visão ampla da realidade. Parabéns.

    ResponderExcluir
  6. Extremamente bem escrito, e o final dá um encerramento perfeito. Na minha visão, perenidade e cidadania são as pontas da estrela que se destacam.

    ResponderExcluir