domingo, 30 de setembro de 2018

Carta para uma eleitora do coiso

Querida, irmã 
Início minha carta me fazendo a seguinte pergunta: que fomos antes da tempestade? Escrevo as 10:00 e nesse mesmo horário  uns meses atrás, você estaria aqui. Hoje não. Ontem também não aconteceu. Às vezes me questiono sobre o que faz com que duas pessoas que se amam vivamente, se desvinculem e comecem a ocupar polos diferentes. Evitando entrar em choque. Como o gelo e o calor. É que antes da tempestade chegar, eu sabia quem éramos. 
Você queria sorrir pra mim aquela noite, mas ele não quis. Eu tentei te contar que ele era doente, você não deixou. Eu sabia que a culpa não era minha. Você foi ensinada que sim, a culpa é minha. E naquele mesmo dia, ele fez uma comparação a nós duas, você se escondeu. Ele te chamou de louca e eu defendi, no entanto, eu não podia, ele estava certo. E desde então você vive escondida, manipulada pra faze-lo manifestar.  
Quero voltar há uns anos, te enxergo brilhante, com voz, fôlego, vida. 
Três filhos. Luta.  
Não consigo imaginar seus pensamentos do hoje, com a mulher que se transformara ontem. Entretanto, entendo. Você me disse em uma conversa que me ama como sou, porém, queria que não me vitimizasse tanto. Ele também não queria. Dizia que eu tinha que encher-me e gritar para o mundo quem sou e que nada mudaria isso, que o mundo não poderia me fazer sentir encolhida. No mesmo dia, mais tarde, meu sobrinho de 6 anos que brincava, foi humilhado, na minha frente, pois estava com as mãos na cintura parecendo um “viado”, da forma mais rude que se imagina o entoar dessa palavra e mais uma vez me senti encolhida. Ele me disse depois, que eu poderia encontrar um homem como ele e só você não percebia o que estava prestes a acontecer. Era isso que queria que você enxergasse, mas, eu não converso com minha irmã faz meses. Eu converso com ele. Com o reflexo do que ele deixou.  
Ele já me vigiou por horas. Já me ligou. Insistiu. Eu já dormi humilhada. Tentei fazer com que seus ouvidos pudessem ouvir o som da minha voz. Maseu não tenho vez. E nessa carta, eu te digo que entendo. Você pode me ouvir agora?  
Ele não gosta de mulheres com os cabelos curtos. Deixa crescer. Mulher minha tem que lavar, passar, cozinhar e estagnar. Cadê você? Ainda lembra de si?  
Me ouve? Posso falar? 
Ele é doente.  
Eu tenho medo. Contudo, entendo você. Ele é o melhor. 
Você me ouve? Com os ouvidos limpos? É você agora?  
Se for você, eu te amo. Preciso conversar com minha irmã, por favor, me escuta. Estou aqui. Você me ama? Você sabe quem sou? Você se enxerga? Então, me escuta. Me olhe com seus olhos, se apresse a te enxergar. Não é bom. Não é solução. É caos. Dor. São estilhaços. Eu não existo. É você, surrada. Uma arma apontada. Ele quer, você não precisa. Ainda há tempo. Pode me ler? Sou eu, sua irmãzinha, me escuta. Você disse que nos protegeria. É a hora. Faltam dias. Estou com medo, você entende? Não te vejo mais. Cadê você? Ele não me odeia? Tem certeza? Estou aflita. Seus pensamentos estão embaralhados. Você me disse que não sou inteligente, mas, não foi você que sempre me mostrou que eu era?  
Eu não acredito no que as pessoas falam, vejo, sinto, e temo, por você, por mim, por elas. Me escute, antes que seja tarde.  
Eu amo você, só que não a vejo. 
Me encontra assim que puder.
Eu sinto muito. 

Lua Cortes

6 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Nossa!!! fiquei presa nessa crônica de uma forma maravilhosa, me conquistou, e muito. A forma como lemos uma hora no presente outra no futuro, você brincou legal.

    ResponderExcluir
  3. Muito boa!! As frases curtas, as perguntas, o uso dos verbos tornaram a leitura muito envolvente. Adorei!

    ResponderExcluir
  4. Parece ter vários significados e todos eles profundamente emocionais. Não sei se foi intencional, mas o "ele" parece remeter a varios "eles" por aí, sobretudo àquele "ele" tema das nossas crônicas. Muito sutil ao tratar do tema e atingir o emocional da destinatária. Acho que um dos maiores pontos positivos da sua crônica é convencer sua irma (sem nem parecer que está o fazendo) e conseguir convencer um monte na rebarba. Fiquei encantada de verdade

    ResponderExcluir