sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Olha pra frente, pai

A gente tava na Pavuna visitando minha tia Gina. Na saída ela avisou pra abaixar o vidro. É que na entrada da rua tinha boca, Chapadão dominou até a pista. Passamos pela barricada devagar, no Linea 2016 que meu pai tinha acabado de comprar. Abaixou o vidro elétrico e foi saindo lentamente. Ele tava todo feliz com o carro novo: banco de couro, direção automática. Comprou porque em 2018 o serviço melhorou. Ele diz que sem a vaca no poder, tudo melhorou.
O bate boca começa já em frente à boca. Ele diz que se tivesse uma pistola metia bala naqueles moleques. Minha mãe é professora do município e tá cansada de ouvir que querem balear seus alunos. A gente entra na Linha Vermelha e a discussão aumenta. Falo pro meu pai que se ele tivesse de guarda chuva no ponto de ônibus ia tomar bala porque PM ia confundir com fuzil. Ele diz que é assim mesmo: no escuro todo gato é pardo. Eu digo que no Rio todo preto é alvo. Meu pai diz que não é preto e minha mãe diz pra ele se olhar no espelho. Ele é negro mas aos 50 ainda se vê como "moreno". Minha mãe diz que tem vergonha do homem ignorante que ele tornou. Eu ouvi calado. Da última vez que disse isso, ele respondeu que foi aquele ignorante que me criou.
Meu pai, homem negro, nascido em Vigário Geral, mas nunca virou estatística. Hoje torce praquele candidato lá se eleger e fazer de todo negro nascido em Vigário Geral virar estatística.
Minha mãe diz que ele tá ficando ignorante que nem seus funcionários. Meu pai responde que pelo menos no trabalho alguém respeita ele.
Alguém ouve.
Alguém deixa ele falar.
"Olha pra frente, pai..."
Saindo da Linha Vermelha, entramos na Estrada Velha da Pavuna e minha mãe segue discutindo, aos gritos. Diz que não é obrigada a conviver com um ser humano odioso.
"Olha pra frente, pai."
Meu pai diz que ela não tem noção de como tá a rua. Não se pode mais andar em segurança. Qualquer lugar é um perigo.
"Pai."
Isso aqui tá um caos. Qualquer coisa é motivo pra matarem alguém. Alguém tem que botar ordem.
"Pai!"
Insuportável! Insuportável!
"Olha pra rua, pai!"
O barulho de freio, o cheiro de borracha, a sensação do corpo pesar dez vezes seu peso normal.
Todo mundo tava de cinto. Não aconteceu nada. Meu pai ficou com corte na cabeça. Mas tudo bem, não aconteceu nada. Minha mãe virou e perguntou se eu tava bem. Eu respondi que sim, não aconteceu nada. Meu pai tirou o cinto e saiu xingando. O homem do carro da frente tinha um carro mais bonito que o nosso, mais caro, com vidro elétrico, direção automática e que ficou todo amassado na frente. O homem olhou pro carro, ficou transtornado e partiu pra cima do meu pai. Minha mãe tirou o cinto com pressa e foi ver o que tava acontecendo. De dentro eu vi a multidão se aglomerar, o homem gesticulando com raiva e mandando minha mãe se afastar. Meu pai se aproximou, o homem meteu a mão atrás da calça, puxou o cano e meteu bala. O cabelo crespo do meu pai não era mais preto, mas vermelho.
Minha mãe gritou alto e o segurou antes que caísse. O abraçou ainda gritando. A camisa dele era branca e a da minha mãe vermelha, mas no fim da vida de meu pai, as duas ficaram da mesma cor: vermelho vivo, vermelho sangue.

Alcione 77

16 comentários:

  1. Gostei DEMAIS do texto! O estilo Alcione de escrever ainda é o mesmo. porém, esse é um texto totalmente diferente. Não vou dizer que surpreendeu pq eu não esperava menos, mas arrasou.

    ResponderExcluir
  2. Sempre acreditei no seu potencial. Tua peculiaridade é essa escrita que aproxima o leitor pegando ele pelo vocabulário cotidiano, tornando a experiência que você relata mais pé no chão. E agora você usou isso pra fazer o texto mais pesado da semana ao invés do mais engraçado, jogando na cara da galera que tu não é um mágico de um truque só.

    ResponderExcluir
  3. Ótimo texto. Constrói uma narrativa envolvente e apresenta momentos de intensidade que fazem toda diferença na leitura. Esse texto foge do humor que você domina e mesmo assim segue brilhante.

    ResponderExcluir
  4. Muito bom Alcione, apostou no novo e foi super bem. Seu potencial é enorme!!

    ResponderExcluir
  5. Gosto muito da forma como você se aproxima dos leitores usando o vocabulário do dia a dia. Manteve a sua forma de escrever, mas conseguiu sair do humor e ficou ótimo!

    ResponderExcluir
  6. Mais um texto de Alcione que me faz querer ler mais e mais. Você cativa e aproxima o leitor de seus textos de uma forma surreal. Parabéns!

    ResponderExcluir
  7. ALCIONE VOLTOU PORRRAAA!!! Com sua marca e com originalidade, voltou pras origens. Eu diria que você se perdeu um pouco nos temas anteriores, mas nessa você conseguiu ser intenso e ter um desenvolvimento impecável do seu personagem.

    ResponderExcluir
  8. Crônica muito bem escrita, bastante detalhada, final épico !

    ResponderExcluir
  9. "o bate boca já começa em frente a boca". Incrível, sacadas perfeitas, vejo um amadurecimento. Você cresceu muito (e nós que agradecemos)

    ResponderExcluir
  10. Texto bom demais. Emocionante e bem detalhado

    ResponderExcluir
  11. Gosto do fato de você usar tempo e lugares, como: "2016" e "Vigário Geral", como eu comentei na crônica do Ricardo Reis, são esses pequenos detalhes que fazem uma diferença, ao meu ponto de vista. Acho que você sempre usa um humor inteligente, e acho incrível as críticas sociais que você faz em todas as suas crônicas. Outro fator importante é que você não ficou apenas naquele humor, como o professor havia dito uma vez (uma dica dele, já que você sabia que esse toque humorístico tinha dado certo certo, deveria tentar o oposto), você conseguiu dar um outro lado nesse texto, conseguimos ver o lado de dramatização que ficou incrível! ♥

    ResponderExcluir
  12. Alcione, sou sua fã! Você é tão versátil com a escrita que chega a ser medonho. Gostei de como você descreveu bem as cenas. O texto tem uma ótima transição e causa empatia. Amei demais <3

    ResponderExcluir
  13. Muito bom, novamente. Bem profundo, tocante e... Sem palavras

    ResponderExcluir