O ano é 2018. Estou de ressaca. Minha cabeça dói, meus olhos não enxergam muito bem, não encontro meus óculos na cabeceira. Acho que é sexta-feira. O relógio, ainda agarrado em meu pulso, marca 11:37 quando começam a pipocar flashes da noite passada. Ela era agasalhada e cinzenta, diferente das negras madrugadas. A noite era das negras que faziam rodar as saias, dos gays que coloriam a praça, das trans que enganavam a quem passava, dos bêbados aos quais se resumia a chegar em casa. A noite era dos homens, dançarinos e sérios; das damas contidas, atiradas, alegres. A noite era de todos.
O ano ainda é 2018. Não bebo há dias. Estou lúcido. Meus óculos vestem-me a face, mas ainda não entendo o que vejo. O relógio erguido ao lado do ponto de ônibus marca 23:23, sou corajoso por estar andando de bicicleta a essa hora. Minhas pernas queimam com a velocidade empregada. Não posso “dar chance ao azar”. Olho para trás repetidas vezes de maneira involuntária - checar se há alguém em atitude suspeita (ou não) me seguindo tornara-se quase que um transtorno obsessivo compulsivo. Hoje a noite é estranha, já não tem as mesmas cores. Não é mais cinzenta, fria, negra ou escura. Hoje a noite é camuflada. O silêncio toma conta de cada esquina da cidade. Não passam carros ou motos e os ônibus a essa hora são quase que inexistentes. Sigo pedalando. Minhas pernas já não queimam, os pedais rodam vagarosamente, preciso ver o que está acontecendo à minha volta. É tudo tão estranho, tão silencioso, tão calmo. A orla é verde e não falo das árvores. As esquinas são quentes e o vento não sopra do mar. É tudo tão pacífico, mas creio nunca ter sentido tanto medo. Olho mais uma vez para trás, não vem ninguém. Sigo pedalando estarrecido, como quem tenta entender o que acabara de ver. Estou chegando em casa e a frente do meu prédio também é camuflada, mascarada e bélica. Não me apontam os canos, mas os olhares desconfiados e odiosos. Vou dormir.
O ano é 2020. Estou indo para a faculdade. O relógio do elevador marcava 13:53 quando desci. Nas ruas, os rostos miram o chão. Da calçada, ouço apenas o choro de uma recém-nascida que passeia nos braços da mãe. Os postes estão acesos, mas não deve passar das 14 horas. Os dias já não existem. Tudo é cinza, melancólico e triste. As cores são frias. Tudo é silêncio e o silêncio tornara-se extremamente perturbador. Os jovens não mais podem ser jovens. Agora a praça é monocromática. Os latidos já não carregam o desdentado sorriso. O fumo dos andarilhos não queima como queimava nos anos que se passaram. Na praça, restaram apenas os inabitados bancos de concreto.
O ano é 2021. Não é mais proibido proibir. As crianças já não cantam livres. Os bêbados já não cambaleiam. O equilibrista não trabalha mais no sinal. Os quadros deixaram as paredes. As músicas não saem da caixa. A poesia virou arma. A arte é criminosa e reprimida. O ano é 2021 e não somos mais os mesmos. “Restos... Somos restos de nós mesmos a boiar” nas ruas inundadas pelo pranto. O chumbo tornara-se o mineral mais valioso para o Estado. Não, não são fogos estalando a noite de sexta. O sangue que escorre pelo meio fio da praça é verde e amarelo, como os girassóis de Van Gogh. Mas isso, só para não dizer que não falei das flores.
Zé Zepilim
eu sou seu fã porraaaaaaa
ResponderExcluirputa que pariu, que texto bom de ler. Muito bom. Envolvente e bem elaborado.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEu poderia passar horas relendo esse texto
ResponderExcluirQue maravilhoso! Muito bom mesmo.Ritmado e envolvente.
ResponderExcluirMuito bom. Leitura fluida e jogo de palavras feito com maestria.
ResponderExcluirÓtimo texto, só me deixou meio na bad kkkk, mas isso significa que você está escrevendo bem e está conseguindo me tocar.
ResponderExcluirA parte da ressaca, me identifiquei kkk. Ótimo texto no geral.
ResponderExcluirA forma como você descreve os ambientes consegue fazer com que o leitor se sinta dentro da narrativa. Muito bom!
ResponderExcluirUtiliza bem de especifidades, coisa que me agrada. A caracterização do texto consegue me inserir e floresce minha imaginação. A padronização das características que mudam com os anos deu muito certo. Conseguiu se adequar perfeitamente ao tema.
ResponderExcluir"os dias já não existem" "a poesia virou arma". Queria beijar esse texto. Belíssimo.
ResponderExcluirAdorei os detalhes que tu exalou nesse texto, fazendo um bom jogo de palavras de fácil leitura e ótima sonoridade para o ouvinte. Também gostei dos detalhes de tempo, clima... dando uma boa estrutura e qualificação ao texto. Tem um tom dramático e melancólico, o que caiu muito bem, além de dar um toque de reflexão sob as palavras que usara. Eu adorei esse texto, estou batendo palma com os pés porque as mãos estão ocupadas digitando esse comentário. ♥
ResponderExcluirBrincou hein, coleguinha! Ritmo, ótimo jogo de palavras...não é teu aniversário ( ou é, não sei ), mas tu tá de parabéns!
ResponderExcluirTu é fodaaaaaaaaa!!! Reli esse texto várias vezes. Adorei como você fez a passagem do tempo e as referências a ditadura.
ResponderExcluirLi umas 3 vezes, mano... Ficou um texto perfeito, a ligação entre presente e futuro, as mudanças, tudo. Muito bom
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