sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Versos ínfimos

André, ninguém veio a teu enterro porque só os mortos de corpo têm esse privilégio.
Somente a solidão. Ela foi tua companheira inseparável. Nunca pediu explicação.
Apenas se fez nos almoços de domingo e nas mesas de bar. Vive tu o imperativo da
primeira pessoa do singular. Grande ofício. Filho de Bento, Bentinho, o oceano não é o
que separa criador e criatura. Cadeiras. Gavetas. Armários. Armaduras.
Sara, coloque suas galochas vermelhas favoritas, pois chove como selva. Não se
preocupe em ir lá fora. A água vem de dentro, mas a lama te espera. Tenha cuidado.
Quando se mora entre feras inomináveis, urge a necessidade de ser também fera. Teu
corpo é teu. Cabelo. Olhos. Nariz. Ventre. Vive dentro de ti, como num rio, a voz de
Iara. O fraquejo de homens bons é teu alimento.
Bernardo, apaga teu cigarro. Esconde o fósforo. Nem mesmo o absinto pode fazer do
homem menino. Chegou o tempo anunciado. O ósculo que traiu o Amor está a porta. A
mão que afaga é a mesma que apedreja. Atira-se. Palavra. Faca. Bala. Vivemos em
miséria. Miséria de abundância. Sobra comida. Sobram famintos. Não amor. Esse não
está posto à mesa. Recluso a livros e hastes de madeira.
Maria. Maria. Maria. Peço perdão por teus filhos. Hoje não há quem limpe suas chagas.
És a última das bertolezas que um dia aspiraram à liberdade, mas foram surpreendidas
por uma batida em suas portas. Sua alforria era uma mentira. A faca abre um corte.
Penetra. Fígado. Intestino. Pulmão. O próprio peixe dilacerado servido com pirão. Tarde
demais. O beijo já havia indicado o golpe condecorado.
Brás, seus heróis morreram. Eles assumiram o poder. Overdose. Aquele garoto que os
viu moldar o mundo. Seu mundo. Não existe mais. Você cresceu. O mundo ficou
pequeno. A consciência tomou espaço. Não há tempo para rodas na bicicleta. Nem
balanço no parquinho. A mão que cuida da ferida é a mesma que aponta. Da mesma
fonte jorra água doce e amarga. O herói virou mito. O mito virou tragédia. Tragédia
brasileira. Confirma. A boca que escarra te beija.

Brás Cubas 171

6 comentários:

  1. E crônica, mas também é poema e ao mesmo tempo música. Perpassar vários nomes fala da sociedade sem em nenhum momento precisar recorrer a palavra. Ao falar de dor e angústia descrevendo os mínimos detalhes dos sentimentos, tudo fica mais claro e impactante.
    Muito alto nível. Um domínio da escrita louvável

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  2. As pausas, a entrega, a forma da escrita...Perfeito!

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  3. Melancólico. Leitura leve e gostosa. A criatividade e gradação do texto é linda. Encantador. Eu não sei nem se eu entendi a crônica mas eu juro que amei demais.

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  4. Não achei muito original. Referências desconexas.

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  5. Gostei que tu fez um bom uso das palavras, combinando-as e dando um bom tom sonoro e reflexivo. Gosto desse detalhe das pausas com os pontos, e adorei o fato de citar Cazuza (porque eu amo Cazuza), mas achei que não se encaixou com o que estava sendo dito no texto. Fora isso, eu gostei bastante!

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