Confesso
O padre já estava quase
indo embora quando a porta à sua esquerda no confessionário se abriu,
frestas de luz pipocando o ambiente. Um homem aparentemente elegante, de terno
e gravata, havia se sentado. Não conseguiu ver seu rosto, mas não fazia diferença.
Muitas vezes os traços físicos enganavam, mas os pensamentos transcritos em
falas sinceras eram incapazes de serem maquiados.
“Boa
noite, meu filho”
“Boa
noite, padre”, responde uma voz grave, meio rouca, quase sussurrada. Aquelas
palavras, tão normais, desceram como um calafrio pela espinha do sacerdote.
Culpou o frio pela estranha sensação e seguiu em frente.
“Como
posso te ajudar?”
“Ah... Eu
tava pensando no rumo que a minha vida tomou, sabe? Sei lá, lembro de quando eu
era pequeno, radiante... Carregava tanta luz... Lembro de brincar com meus irmãos…
A gente tava sempre junto, sempre atrás do pai. Aí fiquei mais velho. Era
adolescente, discordava do velho em várias coisas e me rebelei. Fui expulso da
casa dele”, era possível ouvir o desgosto em sua voz, mas tinha algo mais ali. Diversão?
O padre
pensou em dizer que sentia muito pela triste situação, mas se impediu quando
ouviu uma risadinha.
Era impressão dele ou o ar
tinha ficado mais pesado desde que o outro chegara? Não sabia ao certo o que era,
mas algo na voz do estranho o fazia se sentir mal, desconfortável. Ou talvez
fosse o modo como falava, desdenhoso. Percebeu que queria logo sair dali, mas
era sua obrigação ouví-lo até o final.
“E você não se
arrepende disso?”, perguntou em uma tentativa de agilizar a confissão.
“Padre, pelo
amor… Apenas escute!”, o homem socou a parede que os separava, sua voz áspera, ríspida,
agressiva. Uma onda de medo percorreu todo o corpo do clérigo. Sentiu-se
ameaçado, como se estivesse cara a cara com um animal selvagem que poderia
atacar a qualquer palavra errada sua. Decidiu se manter em silêncio, uma gota
de suor frio escorrendo por sua testa.
Uma
pausa.
“Fui
morar sozinho, criei asas. Me envolvi com diversas mulheres, o que também me
concedeu chifres. Que ótima combinação, né? Foi o início de meus dias sombrios,
certamente. A partir daí criei um gosto pelas coisas… erradas, de acordo com
meu pai. Ah, bons tempos… Hoje tá tudo diferente.”
O dono
daquela voz que deixava o pobre padre enjoado suspirou antes de continuar.
“Confesso, me tornei inútil.
Os humanos fazem merda sozinhos, estão num piloto automático de destruição. Não me entenda
mal, eu acho ótimo! Mas só
fico assistindo de longe. É tedioso! E se tento
persuadir alguém, é fácil demais. Não existe mais o desafio.”
Humanos?!
O coração já frágil do padre parecia à ponto de explodir. Aquilo só podia ser
uma brincadeira doentia de algum louco… Tinha de ser. Mas então porque ele
sentia o temor tomar completamente conta de seu corpo?
“Quem é
você?”, sua voz vacilante conseguiu perguntar.
“Ah,
padre… Isso não é óbvio?”
O
silêncio que se seguiu foi perturbador e só foi quebrado pelo som da porta do
confessionário se abrindo, seguido pelo som de passos ecoando pelo chão da
catedral. Passos que pararam em frente à porta que revelaria o padre a quem ou
o que quer que tivesse passado os últimos minutos conversando com ele. O
sacerdote estava em choque. Não conseguia mover nem um músculo sequer. Sentiu
aquela presença do lado de fora e sentiu quando uma mão segurou a maçaneta e a
girou, retirando a única coisa que os separava.
Souza Queiroz
Se o personagem oculto nesta crônica for nada mais nada menos que Lúcifer, eu deixo meus sinceros parabéns. A mais ousada crônica até agora, não existira nenhum lugar melhor para descrevê-lo do que num confessionário. Adoraria ver a cena na série da Warner, apenas acho que o "soco na parede" não faria parte do seu repertório de ações nessa ocasião específica. Amei a maneira como dá voz ao personagem e todas suas angústias. Caso eu tenha viajado e errado completamente o personagem, desconsidere tudo o que disse.
ResponderExcluirAssim como Don Draper, tive a impressão que seu personagem era mesmo Lúcifer. Mas como não assisti à série homônima, não sei dizer se seria o demônio em si, ou o da série. Acho que esse é um mérito do texto, na verdade. Ele funciona para ambas as interpretações. Achei seu texto muito bem escrito e com intenções certeiras, acredito que tenha conseguido transmitir muito bem a inquietação do padre e criar a atmosfera de suspense. O final também é muito bom. Só tome cuidado com a repetição da palavra "sentiu".
ResponderExcluirMas... se minha interpretação e a de Draper estiverem incorretas, acho que ainda sim você tem um ótimo texto, mas precisa trabalhar melhor suas intenções, embora sinceramente, eu acho que não seja o caso.
Parabéns pela crônica! ;)
A construção do texto foi espetacular, você cria todo um ambiente que deixa o leitor paralisado, como se estivesse ali dentro com o padre. A tensao nos toma também. E o final simplesmente não poderia ser melhor. Criar a tensao e deixa-la no texto faz com que a gente continue com esse sentimento mesmo depois de ler a crônica. Muito bem!
ResponderExcluirNão me diga que não é Lúcifer. Se for, texto incrível! Prendeu muito minha atenção e ótimas referências. Terminei a crônica com vontade de lê-la mais uma vez. Parabéns :)
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