Conserva a dor
SEXTA, 17 de agosto de 2018
O ponteiro do relógio aproximava-se das nove horas da noite, os
talheres encontravam-se organizados em fileira, cada qual com sua função
específica e o cheiro da comida requintada inundava o lugar. Era assim que os
Chateaubriand promoviam a manutenção de um dos costumes mais tradicionais de
todo modelo de família honrada com valores cristãos e cívicos. O pai na ponta
mais privilegiada, a mãe noutro canto nem tão favorável. Os dois meninos bem ao
meio na vista de seus amados pais. Uma configuração beirando uma hierarquia, um
código de conduta não escrito, imposto por alguém que não eles e todos o
respeitavam mesmo à revelia da vontade de alguns.
Era a última matéria do Jornal Brasil, todos se aquietaram e nem
o chefe do lar levava mais colheres à boca. O momento era sagrado e a TV
recebia sua devida adoração. Na bancada do jornal estavam os mais respeitados
repórteres e editores do país prontos para dar a conclusão de mais uma
imperdível edição do noticiário com maior prestígio da nação:
- O evento no Rio o qual comoveu hoje todo o país acabou em
alegria para a população inteira que aguardava o fim do sequestro realizado por
um jovem de apenas vinte anos. Estudante da nacional de direito, Flávio Salles
enfrenta uma aguda depressão tendo de sobreviver com base em remédios de tarja
preta. Hoje de manhã o rapaz pegou a arma de seu pai, um policial militar, e
fez dezessete pessoas reféns dentro de um ônibus na Linha Amarela. Flávio
chegou a ferir uma idosa de sessenta e quatro anos e jogá-la para fora do
veículo num surto de raiva após conversar com os negociadores.
- O Batalhão de Operações Especiais assumiu o caso após o jovem
atirar na multidão que cada vez mais aumentava no local. Amigos de infância
chegaram a postar vídeos em redes sociais pedindo para que salvassem Flávio de
si mesmo. Seus pais chegaram horas depois para ajudar os negociadores. Faltando
dez minutos para completar seis horas de do caso, o pai de Flávio conseguiu
entrar no ônibus e posteriormente sair com o filho. Flávio se rendeu sem matar
nenhum refém.
- O rapaz será encaminhado para uma clínica onde receberá os
tratamentos adequados para sua doença. O prefeito da cidade prometeu ajudar
particularmente a família em qualquer futura despesa. E é com esse espírito de
solidariedade que o Jornal Brasil termina. Outras notícias você encontra...
O senhor Chateaubriand troca de canal enquanto o restante de sua
família termina de comer aliviada.
- Que perigo, graças à Deus que não terminou em tragédia.
- Meu colega na escola disse que conhece os amigos desse cara,
eles moravam na Barra.
- Bom, vamos orar para que ele possa se recuperar depois de
hoje.
O jantar da família prosseguiu sem nenhuma outra emoção e todos
puderam ir dormir satisfeitos. Satisfeitos por terem cultivado a genuína
compaixão cristã enquanto saboreavam sua merecida refeição.
TERÇA, 20 de agosto de 2019
Eram exatamente meio-dia e meia. A configuração da refeição não
era mais a mesma do ano anterior na casa da família Chateaubriand. Apenas o
pai, gozando de sua folga de plantonista como médico em uma Rede D’Or, e um dos
meninos ostentavam a farta ceia enquanto a empregada servia. A mãe trabalhava e
o rapaz mais velho já havia entrado numa universidade, o que já era de se
esperar. Contudo, um pilar permanecia sólido e imutável. A televisão poderia
não receber a mesma adoração, mas ainda assim permanecia com o mesmo grau de
importância. Agora a narrativa pertencia ao Carioca TV que acabava de
transmitir ao vivo o sequestro de mais um ônibus
- Após intensas horas de tensão a Polícia Militar do Estado do
Rio de Janeiro pôs um fim ao sequestro do ônibus Coesa na Ponte Rio-Niterói, o
sequestrador Wilton Souza de dezenove anos, morador do Complexo do Caju,
aterrorizou a vida de quinze reféns antes de morrer após ser baleado nas costas
por um atirador de elite no momento em que saía do veículo. Wilton ostentava
uma pistola que ao fim do sequestro mostrou-se falsa.
- Agora o momento cultura. Hoje às dezesseis horas Roberta Sá
abre o show para Gilberto Gil no Vivo Rio...
O senhor Chateaubriand monta um sorriso disfarçado enquanto
saboreia sua refeição, deixando seu filho confuso.
- Espetacular! Até que enfim o respeito às autoridades voltou.
Quero ver vagabundo sair como inocente agora. Só falta o João Batista colocar
essa esquerdalhada dos direitos humanos pra linha fogo, vão entender o que um
policial de verdade passa.
- Pai, direitos humanos conservam inclusive os seus direitos
individuais.
- Quem te ensinou isso, moleque? Deixa eu adivinhar, seu professor
de história maconheiro?
- Pai, isso na verdade...
- Vou te explicar uma coisa, enquanto você morar na minha casa e
comer da minha comida, não vai ficar defendendo bandido não. Direitos humanos é
o caralho. Aurélia, pode tirar a mesa.
Nada mais foi dito durante o almoço. O senhor Chateaubriand
quebrara qualquer possibilidade de diálogo. Ao fim, toda empatia mínima de um
cristianismo puro e simples foi substituída por um narcisismo e ódio bruto
conservado por muito tempo. Ódio capaz de fazer o mais racional dos homens de
bem implorar por mais repressão e coerção, fazendo-o esquecer de que segurança
pública também se constrói com base em prevenção. Ódio e ressentimento que cega
pessoas ordinárias, fazendo-as lutar com unhas e dentes por seus privilégios,
travando uma guerra do eu contra o outro, sem nem ao menos notar que somos ao
mesmo tempo um e os maiores perdedores desse conflito somos todos nós.
Don Draper
O texto consegue com facilidade retratar a problemática de como os pobres são geralmente vistos pela classe média. Além disso, deixa claro que hoje em dia muitos enxergam os direitos humanos como "direitos de bandidos".
ResponderExcluirtexto que prende o leitor
ResponderExcluirTexto bastante interessante, nos permite visualizar tudo
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