quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Diálogo datado

      O papo começou assim:

      - “Ella, no cenário atual, o que mais te afeta?”

      E, de repente, ela decidiu me contar uma história, cujo conteúdo narrarei logo abaixo:

      Rio de Janeiro, 05 de abril de 2017:
Era uma quarta-feira e Ella beijou uma mulher, pela primeira vez e em público. “Claro, apenas por curiosidade”, concordaram. No entanto, entender a bissexualidade como orientação sexual e não apenas como “curiosidade de beijar alguém do mesmo sexo” era tarefa muito difícil pra ela. Mais ainda no meio de uma praça com vários bares. Era dia de semana e a praça estava vazia. Não tinha jogo do flamengo, como costumava ter nesse dia, fez questão de consultar. Mas, foi só o beijo começar que até torcedor do vasco surgiu pra secar. Nesse dia, Ella entendeu Foucalt e o seu modelo panóptico como nunca havia feito antes. 
      Rio de Janeiro, 03 de março de 2018:
Fazia quase um ano que ela estava em estado de negação. Mas, nesse datado sábado, Ella começou a se entender bissexual. Não que já não soubesse, mas, pela primeira vez respondeu “bi” com a cabeça erguida e sem morder os lábios por vergonha ao ser questionada a respeito de sua orientação sexual. Na verdade, foi apenas uma falsa sensação de liberdade. Nenhuma indagação havia sumido, mas lhe pareceu um grande passo no seu processo de aceitação.

      Rio de Janeiro, 23 de agosto de 2019:
Ilana a chamou pra sair. Ecoavam vozes em sua cabeça: “Praça? Público? De novo? Não, definitivamente não”. Não era quarta-feira, mas Ella ficou engasgada. Desencorajada socialmente, resolveu mandar um migué, daqueles que tem perna mais curta que formiga. Falou que seu término era recente e que não ia rolar. Ila aceitou seus motivos, mas os reais até hoje descem quadrados pela sua garganta.

      Rio de Janeiro, 11 de setembro de 2019:
É verdade que rotineiramente Ella escreve sobre o que mais lhe incomoda, mas essa é a primeira vez que escreveu sobre sua sexualidade. Ela sempre dizia que o incômodo é o primeiro passo rumo à mudança. Além disso, hoje sim é quarta-feira, mas isso não faz mais diferença em sua vida. Decidida afirmou: “que venha a torcida do vasco, a do flamengo e até a torcida do Crivella. Que venha dias e finais de semana. Que venha a praça lotada ou vazia. Mas, que venha, principalmente, a coragem de não datar o que não pode mais ser datado”.
Desceu Quadrado

4 comentários:

  1. MUITO BOM!!! linguagem facil e que instiga a gente a ler

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  2. Adorei o texto, principalmente a referência ao seu pseudônimo, que se encaixa muito bem na narrativa! Parabéns!

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  3. Ótimo texto, gostei muito da divisão temporal que é feita e principalmente da referência ao seu pseudônimo!

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  4. Muito bom texto, Quadrado... fácil de ler e bem legal, inclusive pela referência ao seu próprio pseudônimo.

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