quinta-feira, 26 de setembro de 2019


O Anúncio

Nelson e Nestor olhavam o tumulto, intrigados.
- Coisa estranha, né?! - comentou o primeiro.
- Né! – concordou o segundo em tom de questionamento.
- Já faz um tempo que tá desse jeito aí, um monte de humanos. – Continuou Nelson, mexendo a cabeça de um lado para o outro.
- Tá vendo alguma migalha no chão? Eu tô com fome. – disse Nestor.
- Num dá nem pra ver o chão, ainda mais se tem migalha.
- Aquela menina ali tá comendo pipoca. Lá no colo da moça, aquela com uma luz na mão. Ah, pipoca! Adoro pipoca. Mas ela num vai dá pra gente. Só ficam olhando lá pra cima.
- Ainda num entendi porque esse bando de gente tá aqui. Vamo olhar mais de perto.
Nelson bateu as asas até o outro lado da praça e pousou numa estátua, virado de frente para uma janela. Nestor tentou acompanhar e pousou ao lado do irmão.
- A gente ficar mudano de lugar num vai matar minha fome.
- Fica quieto!
A multidão entrou em alvoroço. A janela estava se abrindo, os flashes brilhavam pelo ar. Um sujeito de estatura baixa surgiu erguendo a mão. Ele parecia saudar a multidão que estava à sua espera. Uma multidão que nunca tinha esperado por ele antes. Estavam lá justamente para conhecê-lo.
- Ué, mas ele nem tá comendo pipoca, porque isso aí tudo? – Disse Nestor.
- Vai ver ele começa a jogar migalhas de pão lá de cima, quem sabe!?
A ideia de distribuir pão, na verdade, fazia mais sentido do que Nelson e Nestor poderiam imaginar. Aquilo não estava tão distante da realidade do homenzinho que o mundo aguardava para conhecer. Era alguém com certa serenidade, calma e ar de timidez. Traços de sabedoria também pareciam recair sobre seu rosto, levemente enrugado, mas poderia ser apenas um alarme falso em vista de sua idade. Ainda era cedo para dizer quais seriam os rumos que aquela pequena figura recém descoberta, encarada pela multidão, poderia traçar com suas vestes brancas.
As nuvens se condensaram ainda mais e o vento ficou mais forte. Os dois irmãos, no alto da estátua, sentiram o vento frio e algumas gotas d´água encostarem suas penas claras.
- Vamo saí daqui, Nestor! – E começou a voar para o lado oposto da praça.
Nestor decolou seguindo o irmão e reclamando dos roncos de sua barriga.
- Espero que esses chuvisco afaste essa turma daqui. - disse ele.
Enquanto sobrevoavam a multidão, um a um, dos mais variados guardas chuvas, foram se abrindo dentre as pessoas, espalhando várias cores ao longo do espaço. Ninguém queria mover um só passo. Pelo menos, não enquanto o pequeno homem no alto da varanda não fizesse seu primeiro discurso. Principalmente em meio a certas polêmicas que a instituição enfrentava naquele momento.
Os dois irmãos se esconderam debaixo de uma marquise com vista privilegiada do púlpito que havia sido preparado exclusivamente para o recém-nascido. Ele caminhou silenciosamente até o local, ajeitou os óculos no rosto e observou as pessoas por um tempo. Os flashes das câmera eram incessantes e os rostos alegres e curiosos se espelhavam dentre os guarda-chuvas. O homem sorriu para as pessoas que estavam naquele espaço aberto e começou seu discurso. Numa língua que Nelson e Nestor eram incapazes de compreender. Pareciam sons repetidos e sem sentido, tal qual os gatos e cachorros faziam.
- Acho que gostaram dele. – comentou Nelson, balançando a cabeça.
- Tá com tique de novo, mexeno o pescoço.
- Ué, mas você também faz isso. Todos nós fazemos. É coisa de família, né não!?
Ficou alguns segundos em silêncio e continuou.
- Será que todo mundo aqui é da família dele? Daquele que tá falano?
Nestor olhou ao redor. O tom de voz do homem de vestes brancas era baixo. Os tons de sua voz não pareciam ter grandes variações. Mas independentemente do que ele dizia, os milhares de fotógrafos e guarda-chuvas, ouviam atentamente e o semblante de cada um era pacífico.
- Num sei. Parece que não, mas estão olhano ele como se falasse pra todos. Igual a gente, como se as pessoas todas fossem irmãos.
- Uau!  - exclamou Nelson e continuou – Você fala só besteira quando tá com fome, né!?
- Foi isso que eu entendi, ué.
Os dois discutiram por um tempo. A chuva cessou e o discurso chegou ao fim. O homem de branco agora era conhecido pelo mundo todo. Tinha dado seu recado para todos e revelado seu novo nome. Sim, ele tinha dois: um de batismo e outro inspirado em alguém que era um referencial para ele. Um nome que nenhum antecessor tinha escolhido.
O público aplaudiu e os irmãos e voaram para longe, cruzando a multidão mais uma vez e saindo das fronteiras do menor país do mundo.
Desde aquele dia, muito se ouviu falar do pequeno homem pelo mundo afora. Logo foi revelado seu estilo de vida simples e forte engajamento para questões internacionais. Se envolveu em pequenas polêmicas e conseguiu ganhar um rótulo de ser moderno, mesmo com atitudes ditas “conservadoras”, como já se esperava de sua parte. Conseguiu a admiração de muitos e se tornou popular. Mesmo sem gravar discos e participar de programas de TV, como alguns membros de sua instituição costumam fazer no Brasil.
Nelson e Nestor ainda não presenciaram outro momento como aquele. Nem ninguém, desde então. Mas o homem de roupas brancas voltou várias e várias naquela varanda. Assim como os irmãos.
Um dia, decidiram se arriscar e pousaram na varanda. Bem na hora em que o homem havia terminado de falar. O senhor se virou para os dois e abriu um sorriso.
- Ah, vejo que vocês voltaram! – falou o homem. – Estava me perguntando se apareceriam novamente.
Ele pegou alguns papéis que estavam no púlpito. Desdobrou um jornal italiano que estava no meio deles e observou a fotografia impressa ao lado da manchete.
Era uma imagem dele próprio no alto da varanda, daquela noite chuvosa com dois pombos brancos cruzando o céu. “Era um sinal de paz, do espírito santo”, pensou o homem. Ele dobrou o jornal e se recolheu em seus aposentos com a meta transmitir uma mensagem de paz para o resto do mundo.

P.J. Souza

11 comentários:

  1. Sua delicadeza ao trazer a perspectiva de dois pombos para uma crônica é fantástica. Acredito que esteja se referindo ao Francisco, mas também me veio a impressão de que pudesse ser o João Paulo II. Fico com o Francisco, e agradeço por mais uma vez nos presentear com mais uma história incrível, por mais singela que possa ser.

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    1. Obrigado pelo comentário Don, fico feliz que tenha gostado! :)
      Agora, existe um trecho em particular que pode responder sua dúvida de forma definitiva...

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  2. p.j. souza, sou seu fã número 1. você vem em um ritmo de 3 cronicas incríveis cara. me senti como se estivesse mergulhando de cabeça nessa história, como se eu pudesse realmente visualizar toda a cena. adorei a linguagem dos pombos, a forma que escreveu merece palmas! mais um ótimo texto.

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    1. Muito obrigado pelo carinho, Ben! Fico contente que tenha gostado das crônicas anteriores também. Espero não te decepcionar numa próxima vez. hahaha
      E também agradeço sua observação sobre as descrições das cenas. (Acho que Don Draper também tinha falado delas na crônica passada).
      Sempre ajudam muito esses comentários, muito obrigado! :)

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  3. Seu texto é muito bom! A ideia de escrever o diálogo de dois pombos é inusitada e incrível, principalmente, porque é um bicho sem muita importância na sociedade, mas que no texto é essencial para a criar a visão que você quis passar.
    Concordo com o comentário feito pelo Ben, me senti dentro da história. O fato de você descrever todos os detalhes da cena proporciona isso ao leitor.

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    1. Agradeço o comentário, Alice! E também fico contente que tenha gostado da ideia dos pombos. Estava com um certo receio de não ter sido uma boa proposta, confesso. Obrigado! ;)

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  4. Eu juro que associei os personagens, desde o começo do texto, àqueles pombos do filme Bolt, da Disney. Amei como a linguagem deles é mais informal e como é feita a descrição da cena, mas principalmente como a estória é bem contada! Me senti totalmente imerso, as imagens foram à minha cabeça no momento em que os olhos tocavam as letras.
    Eu imagino que de fato seja o Papa Francisco, como já haviam dito, já que ele tem uma relação muito íntima com as camadas mais pobres da sociedade. Eu chuto que essas camadas seriam representadas pelos pombos, certo?
    Parabéns pelo texto!

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    1. Adorei a associação, Adam! Na verdade, também me lembrei deles enquanto escrevia. Referência para a parte de ficarem balançando a cabeça. Hahaha Agradeço as observações sobre a forma como a história foi contada e ter se sentido imerso. Como os outros comentários, isso ajuda bastante, obrigado! ;)
      Agora, se o personagem estiver certo, sua interpretação de representação dos pombos também pode estar. Ou pode ser apenas aquilo do leitor acrescentar novas camadas ao texto...

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Parabéns pelo texto,achei bem muito criativo a forma como você constrói a história a partir da visão de Nestor e Nelson(podia ser dupla sertaneja).A descrição da cena também é feita com um primor,que consigo me imaginar nela,as referências também funcionaram muito bem e aparecem no texto de forma muito natural e deixam bem claro quem é a pessoa.

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  6. Que texto INCRÍVEL, PJ! Com toda certeza foi o mais criativo até agora, extremamente detalhista e leve... Parabéns pelo talento!

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