quinta-feira, 12 de setembro de 2019


Nesses tempos tenho sentido o ar pesado, um leve desconforto ao respirar. A gravidade parece ter ficado mais intensa, essa força me puxando cada vez mais para baixo, impedindo meus pensamentos de irem muito longe. A todo tempo traço paralelos entre o que poderia ser e o que é de verdade, o que eu esperava viver e o que no fim acabo vivendo.
Todo esse peso não é desconhecido. Ele esteve aqui naquela manhã quando recebi a notícia de que meu avô poderia estar morto. Os fatos ainda estavam bagunçados, confusos, a conclusão incerta. Lembro de desejar tanto que estivesse tudo bem, que aquilo não passasse de um mal entendido. A pior possibilidade de todas pairava sobre meu quarto, me sufocando pouco a pouco.
E então, meus desejos não significaram coisa alguma e, de uma hora para a outra, ele se fora, me deixando sem ar nos pulmões, minha cabeça confusa como se estivesse caindo. Meu avô tinha sido tirado de mim. E com ele se foram conselhos, palavras de carinho ditas com uma voz rouca, gestos de afeto, presentes incoerentes com a minha idade, comentários aleatórios sobre livros e filmes sobre os quais eu nunca teria ouvido falar e mais milhares de cinzas de cigarro espalhadas pelo chão.
Meu avô era um universo à parte, um símbolo de uma cidade desconhecida e assustadora; alguém que eu conheci tão pouco, mas sobre quem sabia muito. A maior parte das coisas que sei, me contaram. E me contaram tanto… Principalmente, me contaram daquela vez que o calaram por fazer perguntas e ele não se abalou. Me contaram da tentativa de censurá-lo e pude sempre então olhá-lo como alguém cuja trajetória me possibilitava experimentar a liberdade. E então pensei que a experimentaria para sempre. Hoje começo a duvidar disso.
Um pouco mais de uma semana antes de meu avô morrer, ele me ligou. Conversamos pouco porque eu era pequeno e não tinha muita paciência para falar com pessoas que amava. Prometi que ligaria na outra semana. Não liguei. Nunca vou me perdoar por isso, porque depois não havia mais tempo. Não tive outra chance de ouvir sua voz. 
Me assusta pensar que amanhã talvez eu perca a liberdade de ser quem sou, de amar quem amo. Me assusta não ter outra chance de ouvir minha própria voz. Quando tiraram meu avô de mim, também me tiraram um futuro ao seu lado, ouvindo seus ensinos, suas histórias, suas piadas. Me deparo agora com outro futuro meu ameaçado de extinção - um em que posso escrever histórias reais, sobre acontecimentos reais, sobre pessoas reais em um país que não me dá medo.
Souza Queiroz

3 comentários:

  1. Sua crônica me lembrou a música ''Por enquanto'' de Renato Russo... Sempre busco escutá-la quando sinto falta do meu avô.

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  2. "Me assusta pensar que amanhã talvez eu perca a liberdade de ser quem sou, de amar quem amo. Me assusta não ter outra chance de ouvir minha própria voz." que soco no estômago

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