Sônia
25 de setembro de 2019.
Três e quarenta e cinco da manhã.
E lá vamos nós de novo.
Sônia,
A gente sempre acaba se
encontrando. Eu, com os cabelos pra cima, os dentes ainda por escovar. Cum
pouco de fome, talvez, mas você sabe que eu opto por ignorá-la, já que ela é
naturalmente apenas uma consequência do tédio. Você me conhece muito bem. E eu
a você, com seus olhos tortos de um lado pro outro, as costas sempre instáveis.
O ódio a Morfeu. Ou seria ode? Pois quando você vem, eu sempre clamo por ele.
Me desculpe pela sinceridade, Sônia, mas sua companhia tende a me trazer
prejuízos no dia seguinte, ainda mais por ser hoje o amanhã. Mas tudo bem, não
fique triste. Você costuma me apresentar grandes canções, não é mesmo? Aliás, o
que vamos ouvir hoje?
Fechando e abrindo a
geladeira a noite inteira.
Eu ando da cozinha ao
quarto. Do quarto à sala. Da sala à varanda, faço um carinho no cachorro. Volto
à cozinha. Abro a geladeira de novo mas não pego nada, apenas procuro o exato
momento em que a luzinha de dentro se apaga. Sabe, Sônia, às vezes eu penso que
ele fazia isso também. Eu sei que você diria que todos o fazem, que existe uma
unidade por trás de todas as diferenças no mundo. Mas eu tenho em mim a loucura
de que ele seria meu amigo. A loucura de que somos únicos, extraordinários. De
que somos diferentes. É errado se sentir assim em meio a tanta gente, Sônia?
Se ele estivesse aqui,
talvez eu abrisse o Jack Daniel's que mantenho guardado para ocasiões especiais
que nunca chegam. Beberíamos e dedilharíamos o violão baixinho para não acordar
aos meus pais e nem aos vizinhos. Cantaríamos algumas de suas canções, e talvez
eu criasse coragem pra mostrá-lo uma das minhas - e quiçá, até comporíamos uma
ali mesmo, e isso seria a coisa mais linda do mundo. Sabe, transformar o tédio
em melodia. Ele se esforçaria para não soltar por inteiro sua berrante voz, mas
se o fizesse, eu pouco iria me importar. Todo som ecoado por entre aqueles
cachos me diz um pouco sobre ele, e a cada fonema, cada nota, cada verso, eu me
sinto mais próximo de sua vida. Burguesa, poética, marginal. Guetos, zona sul,
boemia. Homens e mulheres. Vida louca vida. Mas também prestaria atenção em seu
silêncio. Eu às vezes me vejo quieto, sem razão ou motivo aparente, e
recentemente descobri que ele também... se via assim. Talvez eu tivesse alguém
ao meu lado para cantar a solidão. Talvez.
Mas ele não está aqui,
Sônia. Ele nunca estará. Ele nunca ao menos saberá o meu nome. Seu corpo
esbelto e pintado de sol nunca abraçará o meu. Seu sotaque carioca
despretensioso nunca se confrontará ao meu fluminense. Mas isso não significa
que eu não possa fingir que sim. Finjo que vamos juntos à Cantareira e, após
consumir, nos quiosques, das doses semanais de câncer, tentaríamos convencer os
garçons dos bares de que somos clientes apenas para usar o banheiro - a igreja
de todos os bêbados. Acredito que teríamos sucesso e rezaríamos em paz, mas
caso não, ele com certeza se renderia à confusão. Tiraria a camisa mostrando o
peito magro e cabeludo e iria em direção ao dono do bar. Como assim eu não
posso usar o banheiro? Quer que eu mije na rua? Logicamente seríamos expulsos,
mas, por sermos brancos, ficaria só por isso mesmo. Talvez ele me ensinasse a
viver, Sônia. Uma ideologia ou algo parecido.
Eu acho que nem mesmo ele
sabia, Sônia. Tenho quase certeza. Mas talvez nós pudéssemos aprender juntos.
Ele me ensinaria a enfrentar a timidez. A levar mil rosas roubadas às minhas
inúmeras paixões desenfreadas, mas a pensar que meus amores inventados nunca
existiram no momento em que eles acabassem. A pedir piedade a essa gente careta
e covarde. A contar segredos de liquidificador. A dizer que todos os meus
defeitos simplesmente fazem parte do meu show. A admitir que talvez eu seja
mesmo exagerado. Ele diria que nós arianos somos burros, e eu concordaria com
todos os dentes mesmo sem saber um pingo sobre astrologia.
E eu o ensinaria a... O
que eu poderia ensiná-lo, Sônia? Sinto que tudo que sei é sobre os outros. Que
meus ensinamentos resultariam naquela eterna falta do que falar. Que.
Sônia, todo dia você me
convence que o céu faz tudo ficar infinito. Bendita seja a arte, que me
apresenta a quem nunca vai me conhecer. Bendito seja ele, que a cada dia,
insiste em tentar me apresentar a mim.
Adam Sandler
eu fiquei ben triste. senti como se fosse um desabafo. obg por ter se aberto. li cada pedaço com muita calma pra poder apreciar. obg por tanto. você é um escritor incrível adam sandler, poderia ler tudo que você escreve.
ResponderExcluirMuito obrigado, Ben! Seu comentário me deixou ben, mas ben feliz! Amei que até pra comentar você usa letras minúsculas: isso que é um escritor fiel ao seu estilo.
ExcluirCara, você escreve bem demais!!! Também conheço bem a Sônia... As referencias das músicas foram super bem colocadas e o andamento do texto também está ótimo.
ResponderExcluirPor mais que evitemos, a Sônia sempre chega pra bater um papo. E no final, ele nem sempre é ruim.
ExcluirObrigado!
MEUS DEUS!!! Cara seu texto é brilhante, ele emociona a cada linha e traz uma proximidade construída entre vocês que é tão gostosa de se ler... Mandou muito bem, a escrita é impecável,um milhão de vezes parabéns!!
ResponderExcluirFala sério, que texto genial!!! Tá ficando chato ter que elogiar todos os seus textos, Adam, continue assim. A forma como sua escrita pode nos tocar é incrível, a utilização dos trechos das músicas e a descrição sútil, porém, muito bem colocada ao decorrer do texto faz com que ele apesar de leve seja emocionante.
ResponderExcluirAdorei o texto muito bom mesmo,gostei da personificação da insônia acrescentou muito ao texto.A forma como vc usou trechos de músicas como referência achei bem interessante e foi bastante inteligente,cria uma aproximidade entre o leitor e o texto.
ResponderExcluirA construção do imaginário de uma noite fria e pacata acontecem de forma natural e suas referências da música de Cazuza e da MPB situam o leitor de forma mais aprazível. Ao dar vida a uma abstração como a insônia e brincar com a morfologia a sua própria morfologia você demonstra uma imensa criatividade que é marca registrada de seus textos.
ResponderExcluirEsse foi um dos textos mais bem feitos na disciplina até agora! Adam, a habilidade com que você escreve é incrível! Minha parte preferida é a insônia sendo retratada com esse "apelido" carinhoso, parabéns!
ResponderExcluirTexto incrível, muito criativo, bem construído e com referências de músicas muito queridas por mim. Parabéns mais uma vez, Adam Sandler!
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