O Poder
do Mito
Mitos
são histórias que povos e culturas transmitem através das gerações na tentativa
de explicar fenômenos que são incompreensíveis para eles, mesclando a realidade
com a fantasia. Mas também podem ser fontes de conhecimento e serem capazes de
proporcionar aprendizado. Ou seja, existe uma dualidade entre o mundo real e
fictício dentro dos mitos. Dona Terezinha começava a achar que o mito do Brasil
ser o país do futuro estava mais próximo da realidade que da ficção.
A
senhora de alguns vários anos de idade muito bem vividos, diga-se de passagem,
jantava com sua filha naquela noite calma de domingo. O vento frio fazia um som
estridente nas janelas mal fechadas que rangiam. Era o som predominante do
ambiente para além dos talheres se esbarrando no prato de porcelana a cada
colherada de sopa. “Que horas são?”, perguntou a velhinha, quebrando silêncio
enervante. A filha bateu a colher no prato, visivelmente irritada e sem um
pingo de paciência. “Sete e quarenta”. Respondeu num tom mais árido que o
típico clima do sertão nordestino. A velhinha continuou: “Eu quero ouvir a voz
do Brasil. Já perdi uma boa parte.” A filha respirou fundo e explicou que a
transmissão estava em outro horário e que elas poderiam ver as notícias na TV,
depois do jantar.
Dona
Terezinha não acreditou na desculpa esfarrapada sobre o programa de rádio estar
num horário novo e continuou em seu leve estado de ansiedade. Explicou que
tinha visto as notícias mais cedo e que sua crença na política brasileira
estava renovada. “Agora a corrupção vai acabar, não é possível!”, e bebeu um
gole da sopa. Ela sentia que as pessoas estavam se deparando com saída da
caverna, finalmente. Como se desistissem de olhar as sombras projetadas no
fundo para encarar o mundo real. Tinham entendido o mito. Toda aquela história
de usar verde e amarelo, as cores da bandeira brasileira, tinha dado resultado.
Era um tipo de renascimento, como uma fênix que recomeçava sua história depois
das cinzas. Sim, a fênix. Mais um mito. Talvez fosse por isso que Dona
Terezinha gostava tanto de histórias: dialogavam com muito da vida real.
A filha
tentava prestar atenção no discurso da mãe, mas já tinha ouvido aqueles
comentários. No fundo, ela gostava que a mãe estivesse se sentindo bem e
acreditando que as futuras gerações viveriam num país mais democrático, sem
corrupção ou violência. Com liberdade de expressão e respeito. Um verdadeiro
paraíso na terra. Tudo isso sem precisarem cruzar um oceano com monstros
desconhecidos, ou enfrentarem a fúria de deuses. Por mais que essa jornada mitológica
já estivesse em curso, Dona Terezinha acreditava que seria um desafio mais
fácil de concretizar.
A
velhinha terminou seu jantar. Colocou a colher dentro do prato de porcelana
vazio e ameaçou se levantar da cadeira, mas a filha ficou de pé e se aproximou
dela. Colocou um copo de água na mesa e entregou um comprimido para a mãe. “É
hora do seu remédio.”, disse a jovem. Dona Terezinha colocou o comprimido na
boca e o engoliu, bebendo um gole d`água. Ela respirou fundo. Olhou para os
lados e perguntou: “Que horas são? Eu quero ouvir a voz do Brasil.” A filha
respondeu que o programa tinha acabado e que elas veriam tudo na televisão.
“Ah,
que ótimo! Agora as coisas vão mudar, você vai ver. Eu quero ver o pessoal na
rua, pedindo pro Collor sair! Vai dar tudo certo de agora em diante.” Disse
Dona Terezinha enquanto se levantava com a ajuda da filha. A jovem pensou em
explicar, mais uma vez, que não estávamos em 1992. Era um novo século, um novo
ano: 2018. Mas com problemas parecidos. Ela também pensou em explicar que o
mito não era mais sobre um Brasil como país do futuro. Pelo contrário, a cada
dia esse mito estava se tornando mais fantástico enquanto outros mitos se
tornavam mais reais. O sentido dessa palavra tinha mudado. Mas a filha percebeu
que seria em vão.
O
Alzheimer da mãe estava avançado. Ela se esqueceria outra vez de todas as
explicações e da nova realidade brasileira, nem tão nova assim. Só que havia um
ponto positivo. Dona Terezinha não conheceria o que “Mito” havia se tornado.
P.J.
Souza
CARALHO QUE TEXTO FANTÁSTICO
ResponderExcluirSensacional! A forma como a narrativa se constrói atrai o leitor e também provoca reflexão. Parabéns pelo texto!
ResponderExcluirO único problema da sua crônica é que essa história ainda não é um livro. Impressiono-me com facilidade com a qual consegue inserir o leitor na sua narrativa e como descreve cada detalhe como grandes escritores fazem. Você ainda dá voz a personagens de uma realidade muito ignorada no nosso país e dessa vez entrega um final digno de todas as expectativas construídas ao longo da crônica.
ResponderExcluirO fato de identificarmos várias Donas Terezinhas em nossos âmbitos familiares explica em partes o resultado político atual. Elas, porém, diferentemente da personagem, não são necessariamente doentes, mas sedosas por ouvir a voz do Brasil. Tal sede as faz beber do veneno, e, na busca pelo futuro, acabam por repetir o passado. Ótimo texto.
ResponderExcluir0 defeitos, puta que pariu!
ResponderExcluirPorra, não da contigo.
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