Você nunca se
despediu
Mais um dia. Olhou-se
no espelho: era o mesmo ainda. Como não o reconheciam?!, pensou. Um
pouco diferente, mas quem continua o mesmo, não?! Sentia-se o mesmo. E via-se o
mesmo de dentro para fora. Ainda era o mesmo. Cansou de olhar-se procurando a
diferença e vestiu seu chapéu e blazer brancos, seus favoritos, talvez. Mais um
dia. Mais pessoas e lugares novos. Se tinha uma coisa que era real era que
quanto menos o reconhecessem, mais conhecido ele ficaria, mais gente gostaria.
Ele não controlava isso. Doía mudar, mas não havia nada que pudesse fazer. Ele
era assim. Raul Seixas o chamaria de metamorfose ambulante se pudesse.
Mais um dia. O
som alto reverberava por todos os cantos, não havia onde se esconder dele, não havia
onde ele não pudesse entrar. O clima do país diferente castigando sua pele por
baixo da blusa branca rasgada no peito. A multidão indo a loucura e cantando
junto. Um momento único. Quem tivesse sua atenção seria eternamente abençoado e
sortudo, diziam. Beije. Beije. Beije. Pronto. Beijada e abençoada. Não era o
Papa, mas era como se fosse. Ele sentia como se fosse sua primeira vez ali, e
de alguma forma, era. Cada nota e batuque soando perfeitos. Um momento único. Julgue-me,
processe-me, todos fazem isso. [..] Não questione minha cor. Não questione.
Preto é o que se
usa em funerais. Preto foi o que ele usou no dia do enterro de sua dignidade.
Ele nunca mais foi o mesmo depois daquele dia, disseram. E percebia-se. Ele
nunca mais fora o mesmo. Talvez ele não fosse o mesmo há muitos anos, não falo
por fora, e sim, por dentro. Mas aquele dia o mudou de outra forma. Crianças? Crianças??
Crianças??? Ele amava crianças, como ele pôde?! E não pôde, provaram. Mesmo
assim, o marcaram por isso. Ele não pôde, provaram, mas o perseguiram por isso.
Incrível como tudo que se dá, seja bom ou ruim, volta, sendo bom ou ruim, não
é?!
Menos um dia. Precisava
parar a dor, parar a culpa de um fardo que não era seu. O que para a dor? Remédios,
é claro. Os mais fortes, é claro! Os ilícitos, é claro!!! O que não era
problema, tudo se resolveria entre os dois. Negócios são negócios, doutor, só
pare a dor! E de repente, parou. O dia que sua dor parou, iniciou a de muitos
outros. Uma dor indescritível, uma dor sem o adeus, uma dor sem solução, acidental.
Não era pra exagerar, doutor!
Não foi a intenção, mas foi você que
pediu para eu parar a dor.
Coraline.
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