quinta-feira, 26 de setembro de 2019


Você nunca se despediu
Mais um dia. Olhou-se no espelho: era o mesmo ainda. Como não o reconheciam?!, pensou. Um pouco diferente, mas quem continua o mesmo, não?! Sentia-se o mesmo. E via-se o mesmo de dentro para fora. Ainda era o mesmo. Cansou de olhar-se procurando a diferença e vestiu seu chapéu e blazer brancos, seus favoritos, talvez. Mais um dia. Mais pessoas e lugares novos. Se tinha uma coisa que era real era que quanto menos o reconhecessem, mais conhecido ele ficaria, mais gente gostaria. Ele não controlava isso. Doía mudar, mas não havia nada que pudesse fazer. Ele era assim. Raul Seixas o chamaria de metamorfose ambulante se pudesse.
Mais um dia. O som alto reverberava por todos os cantos, não havia onde se esconder dele, não havia onde ele não pudesse entrar. O clima do país diferente castigando sua pele por baixo da blusa branca rasgada no peito. A multidão indo a loucura e cantando junto. Um momento único. Quem tivesse sua atenção seria eternamente abençoado e sortudo, diziam. Beije. Beije. Beije. Pronto. Beijada e abençoada. Não era o Papa, mas era como se fosse. Ele sentia como se fosse sua primeira vez ali, e de alguma forma, era. Cada nota e batuque soando perfeitos. Um momento único. Julgue-me, processe-me, todos fazem isso. [..] Não questione minha cor. Não questione.
Preto é o que se usa em funerais. Preto foi o que ele usou no dia do enterro de sua dignidade. Ele nunca mais foi o mesmo depois daquele dia, disseram. E percebia-se. Ele nunca mais fora o mesmo. Talvez ele não fosse o mesmo há muitos anos, não falo por fora, e sim, por dentro. Mas aquele dia o mudou de outra forma. Crianças? Crianças?? Crianças??? Ele amava crianças, como ele pôde?! E não pôde, provaram. Mesmo assim, o marcaram por isso. Ele não pôde, provaram, mas o perseguiram por isso. Incrível como tudo que se dá, seja bom ou ruim, volta, sendo bom ou ruim, não é?!
Menos um dia. Precisava parar a dor, parar a culpa de um fardo que não era seu. O que para a dor? Remédios, é claro. Os mais fortes, é claro! Os ilícitos, é claro!!! O que não era problema, tudo se resolveria entre os dois. Negócios são negócios, doutor, só pare a dor! E de repente, parou. O dia que sua dor parou, iniciou a de muitos outros. Uma dor indescritível, uma dor sem o adeus, uma dor sem solução, acidental.
Não era pra exagerar, doutor!
Não foi a intenção, mas foi você que pediu para eu parar a dor.

Coraline.

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