MARGINAL
Era 1h da manhã quando eu dormi. No dia anterior, tinha
feito uma longa viagem, arrumei a casa, dei banho no cachorro, tirei o lixo,
arrumei as coisas da mudança enquanto ouvia minha avó contar a história de como
meu falecido avô AMAVA o América Futebol Clube pela milésima vez, faltei aula,
passei horas fazendo um bico pra ganhar um extra. Cheguei MORTA.
"Leu o texto?"
"Que text.. CARALHO O TEXTO! O texto... qual texto
mesmo?"
Eram 2h da manhã quando eu fui dormir.
No dia anterior eu tinha acordado cedo, arrumei a casa,
desfiz algumas caixas que sobraram da mudança, fiz comida, fui pra aula,
consegui outro job. Cheguei MORTA.
"Leu o texto?"
"Que text.. CARALHO O TEXTO! O texto... qual texto
mesmo?"
Eram 3h da manhã quando eu fui dormir.
Perdi o primeiro tempo de aula, estava com tanto sono,
também não almocei, cheguei tão tarde que nem deu tempo de fazer a comida,
nessas horas que eu sinto falta de morar com minha mãe... aliás, quando foi a
última vez que eu falei com ela? Ela está tão feliz, nem acredita que a filha
dela, uma mulher que nunca sonhou com o ensino superior e foi empregada
doméstica a vida toda, é a primeira da família em uma faculdade pública, conta
pra todo mundo, eu rio achando fofo. Vou ligar quando terminar a aula. Vou
ligar quando chegar em casa. Vou ligar depois de fazer a janta. Vou ligar
quando terminar de enviar currículo, o contrato do freela ta acabando e o
aluguel ta vencendo. Vou ligar quando...
"Leu o texto?"
"Que text.. CARALHO O TEXTO! O texto... qual texto
mesmo?"
Vou ligar quando terminar o texto.
Eram 4h da manhã quando eu fui dormir.
Não liguei pra minha mãe, li três textos atrasados e ainda
faltam alguns, inventei uma desculpa no freela e fui pra aula, perdi a
primeira, mas tinha que ir em alguma pelo menos, ne? Ignorei meus boletos e me
dei o luxo de pegar um uber.
"Viu o jornal?"
"Jornal... que jornal?"
"Não viu hoje de manhã? Esses marginais foram pra rua
de novo! Se quisessem tanto estudar, estariam ESTUDANDO e não fazendo balbúrdia
na rua. Mas sabe o que é isso? Um bando de desocupados, filhinhos de mamãe,
nunca devem ter trabalhado na vida! Esse povo de faculdade é tudo assim, sabia?
Mas também, tudo filho de rico, sempre tiveram tudo de mão beijada, não tem uma
obrigação, na minha época não era assim. Hoje eles só estudam, ou melhor, DIZEM
que estudam, ne? A verdade é que fumando maconha o dia todo, é só festinha todo
fim de semana. Tinha é que acabar com 'essas porra' e botar todo mundo pra
ralar, dar uma enxada na mão de cada um. Concorda?"
"hm"
"Aliás, onde você vai ficar mesmo?"
"Na UFF"
Blues Girl
Tapa na cara dos bolsominions. Ótimo texto, prende, conecta e faz o leitor se identificar ou pelo menos entender o esforço que muitos brasileiros passam para conseguirem estudar
ResponderExcluirQue texto incrível. A repetição nos prende e nos causa uma angústia difícil de explicar, parabéns!
ResponderExcluirEu imagino que você tenha dado apenas uma estrela pro motorista. Adorei!
ResponderExcluirMelhor texto da semana. Cruel e real.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirÓtimo texto! Parabéns. Como já comentaram, a repetição nos prende à história e provoca ansiedade para saber o final. Além disso, seu texto reflete muito o cenário atual da sociedade, onde as pessoas vivem tanto dentro de suas próprias bolhas que acabam perdendo a noção da verdadeira realidade.
ResponderExcluirMe amarrei nesse texto...Um dos motivos é esse afastamento dos nossos pais,que mesmo sem querer,um dia sentiremos falta..
ResponderExcluirGostei da descontrução que você fez sobre o que as pessoas pensam sobre os estudantes de pública. A gente só percebe a relação com o tema no fim, de forma bem sutil.
ResponderExcluirGostei muito da construção da crônica, nos transmite realmente a angústia do autor. Parabéns!
ResponderExcluirGostei do uso da repetição, mostra as dificuldades a serem enfrentadas a cada dia - algumas novas, outras, velhas conhecidas. Além da questão da questão do esteriótipo para com o estudante de universidade pública, que foi retratada com bastante delicadeza.
ResponderExcluirQueria te dizer que esse foi um dos primeiros temas requeridos pelo professor e, ainda assim, esse texto permanece sendo o meu favorito desde então. Ele retrata a realidade de maneira tão fiel, que a imagem de alguns colegas chegou a até mesmo passar pela minha mente enquanto eu realizava a leitura. Um outro ponto que eu gostaria de destacar é que apreciei muito a forma escolhida para o desenvolvimento do texto e introdução do tema, só tornando-o evidente ao final... Além de instigar bastante o leitor, essa "técnica" também acaba realçando o seu texto por fugir da linha de desenvolvimento mais "padrão". Já a repetição, como dito anteriormente, foi uma estratégia sagaz demais e muito bem utilizada ao longo do texto, pois ela complementou toda essa ideia de um ciclo vivido, essa ideia da falta de tempo que as tantas tarefas que sempre nos acompanham nos impõe... Por último, gostaria de destacar esse trecho: "Vou ligar quando terminar a aula. Vou ligar quando chegar em casa. Vou ligar depois de fazer a janta. Vou ligar quando terminar de enviar currículo... Vou ligar quando..."... Ok, ele dispensa delongas. Caramba, nele eu tive a certeza de que o texto estava conversando conosco, seus leitores!!! Sua leitura chegou a apertar o peito! Afinal... Quem nunca e, principalmente, quem não se frustra? A gente só segue vivendo "quando dá".
ResponderExcluir