Visita Noturna
A
última faísca mal tinha cintilado no céu, há poucos segundos, quando a morte
bateu na minha porta. Literalmente. Se eu soubesse que aquela contagem
regressiva significaria mais do que a passagem de um ano para o outro, talvez
tivesse repensado nas coisas que fiz pouco antes de 2018 encerrar seus ciclos
lunares. Mas agora era tarde demais. Os fogos tinham se apagado pelos céus e
aquela criatura sinistra me encarava diante da porta aberta. Elvis estava
deitado no sofá sem se importar muito com o que acontecia à poucos metros de
distância dele. Só ergueu a cabeça quando a campainha tocou, olhou para nossa
visitante e se recostou novamente para dormir o sono dos justos.
Ao
contrário do que se possa esperar, a morte não usava uma capa preta com um
capuz obscuro, ou uma foice cintilante como os fogos de artifício que minutos
atrás, mal sabia eu, seriam os últimos que veria na vida. Não, nada disso. Ela
também não era um esqueleto propriamente dito. Tratava-se de uma senhora idosa
e aparentemente desnutrida que segurava um guarda-chuva comprido para se apoiar
no chão, como um tipo de bengala. Suas roupas eram formais e elegantes,
pareciam mudar de cor à medida que ela caminhava, variando de uma paleta escura
e metalizada entre tons de verde musgo, vermelho sangue e azul-marinho. Mas
nada naquela presença se comparava aos olhos sombrios que a velhinha possuía.
Eram de uma atmosfera tão densa e perturbadora quanto só a morte poderia
representar. Nenhuma palavra precisou ser dita para que eu a reconhecesse.
Nenhuma sílaba, ou som, foi emitido. Ela
abriu um sorriso que lembrava um certo felino do país das maravilhas e me olhou
por alguns segundos. Não posso dizer nada sobre o que passou pela mente de
Elvis. Imagino que ele só seguiu o instinto de continuar deitado no sofá,
ignorando a situação. Eu também não imaginava as intenções da nossa visitante,
embora aquela triste noite fosse um reflexo indireto das minhas frustrações.
Deveria
ser um momento de comemoração, de renascimento. Encontrar pessoas próximas e
queridas para compartilhar piadas de mal gosto, ideias geniais que nunca seriam
realizadas e aqueles recalques perdidos ao longo do ano anterior. Acontece que
nenhum convite sequer, para qualquer tipo de evento social, do mais simples ao
mais extravagante, tinha chegado ao meu encontro naqueles últimos dias. Me
sentia como se estivesse no meio de uma rodovia deserta com um carro quebrado e
um fraco sinal de celular, mas sem alguém para atender do outro lado da linha.
Muitos passavam pela estrada e ficavam em minha companhia por um tempo até se
afastarem de novo. E agora, as coisas pareciam ter se complicado ainda mais. Um
tipo de muro estava erguido, dividindo as pessoas. Elas eram incapazes de
construírem uma simples janela entre os tijolos. Qualquer tipo de comentário, independente do
que fosse, poderia gerar um conflito e todos atirariam pedras uns nos outros
por cima da estrutura de alvenaria. Por isso tentei me preparar
psicologicamente para passar a noite com Elvis e mais ninguém. Não que ele não
fosse um bom amigo, mas possuía certas limitações. Elvis nunca entenderia o que
se passava comigo, por mais que eu tentasse explicar. Eu mesmo não tinha uma
resposta certa. Chegou um momento em que aceitei que passaria toda a vida
naquele ponto do mapa, e talvez fosse assim com todo mundo: cada um no seu
próprio trecho da estrada. Eu só precisava transformar aquele lugar num paraíso
pessoal e respeitar quem cruzasse o caminho. Mesmo aqueles que só tivessem o
objetivo de destruir o que eu havia criado. Mas tudo estava diferente agora. Os
outros viajantes olhavam desconfiados, temerosos em parar e em seguir seus
rumos. Queriam saber de qual lado do muro meu pequeno paraíso estava
construído. Só que nada disso importava mais realmente. Pelo menos, não desde
que atendi a porta naqueles últimos minutos, recebendo como resposta um
silêncio que significava o fim da minha jornada.
A
senhora caminhou até o centro do apartamento e se sentou lentamente na poltrona
encardida e sutilmente rasgada. Foi quando Elvis se assustou e se encolheu no
canto do sofá. Ele parecia querer dizer alguma coisa, mas era incapaz de fazer
isso. Como um bom anfitrião, ofereci um café, um copo d´água e uma refrescante
água de coco. Mas o retorno foi um prolongado silêncio constrangedor. Minha
mente se perdia nas várias interpretações daquela visita. Eu seria capaz de
ligar diversos pontos e criar algumas teorias loucas sobre a morte ir me
visitar, indo para muito além do óbvio de que ela buscaria minha alma ou coisa
do tipo. Certos peregrinos que circulavam a rodovia já haviam mencionado a
presença dela no cenário político que se aproximava, por exemplo. Alguns deles
pareciam paranoicos e tinham seus motivos para estarem naquele estado. Outros
não faziam ideia do que afirmavam. Mas era de consenso geral que uma neblina
obscura pairava o ambiente e o céu estava encoberto para além de uma tempestade
de areia no meio da estrada, ou da nuvem de fumaça tóxica causada pela queima
dos fogos.
Eu me
sentei de frente para a visitante e Elvis se aproximou de mim. Ficou ao meu
lado e coçou o bigode, indiferente. A velhinha estendeu o guarda-chuva e girou
uma peça de metal na altura do cabo. Vários símbolos estavam gravados na
estrutura, mas não consegui reconhecer nenhum deles. Pareciam hieróglifos ou
algum ícone de uma língua extinta. Eram geométricos e não me remetiam a nada
que pudesse de ter visto, nem nos filmes, nem em livros que explorassem
assuntos fúnebres. O fato é que nossa visitante selecionou um dos símbolos
inelegíveis e ele se acendeu, como num botão daquelas cafeteiras modernas. A
velhinha ergueu o guarda-chuva e tocou o objeto no chão. Um feixe de luz
percorreu todo o piso e ele se iluminou por alguns milésimos de segundos. Uma
certa leveza invadiu o ambiente. Imaginei que deveria ser daquele jeito que a
visitante levava os reles mortais para “o outro lado”. Por pouco tempo, me
senti bem e aliviado. Todas aquelas angústias e desesperanças que envolviam o
ambiente se tornaram irrelevantes. Já não me preocupava se minha localização
apareceria no GPS, se a aparência do meu paraíso na a rodovia agradava, ou se
passava uma impressão equivocada. Também não me importava nem um pouco se todos
me abandonariam naquela estrada. A poeira tinha baixado milagrosamente. E
quando pensei que a indiferença fosse um problema para as próximas gerações se
preocuparem, a normalidade voltou a reinar como o impacto de um tiro e a coroa
estava na cabeça de alguém que não ajudaria a transformar o mundo num lugar
melhor.
A luz
tinha se apagado. Tudo ao redor estava exatamente como antes, o apartamento
continuava intacto. Nada estava fora do lugar. Mas a velhinha tinha
desaparecido. A poltrona rasgada que
Elvis nunca se responsabilizou por danificar estava vazia. Nossa visitante
sombria também voltou a seguir pela própria estrada, como se tudo aquilo
tivesse sido um sonho. Uma alucinação. Não era o caso. Ao meu lado, o bichano
não respirava mais. A sétima e última vida de Elvis, havia sido levada pela
velhinha. O felino não estaria mais ao meu lado naquele ano novo. Eu estava
sozinho mais uma vez para reconstruir meu ponto no mapa. E não deixaria que a
última faísca de esperança também se apagasse no céu.
PJ. Souza
Sua crônica consegue brincar muito com a dualidade entre sobrenatural e real e embora fuja um pouco da proposta inicial de relacionar com o atual contexto político, o conjunto da obra prende até o final. Final esse que pode frustar um pouco o leitor que criou expectativa para uma conclusão um pouco aterrorizante!
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